Steph.Mostav 07/06/2021A revoltaCamus dividiu sua obra em três ciclos e acredito que dois deles são necessários para compreender A peste. O primeiro é o ciclo do absurdo, que reflete sobre o conflito entre nossa necessidade de dar sentido à nossa existência e o caos do mundo, indiferente a ela. Para Camus, a saída a esse questionamento sem resposta é aceitar o Absurdo como parte de nossas vidas e conviver com ele. Exemplos dessa fase são O estrangeiro e O mito de Sísifo, mas A peste também trata desse tema. O segundo ciclo é o da revolta ou rebelião, que trata de toda forma de luta contra a opressão e tudo que desrespeite a condição humana. A questão agora não é somente a consciência do Absurdo, mas o reconhecimento de uma experiência generalizada entre as pessoas e o enfrentamento necessário para superar esse sofrimento. Se no primeiro ciclo o símbolo era Sísifo, agora é Prometeu. E é no contexto do ciclo da revolta que está inserido A peste, este romance de 1947 que descreveu tão bem a época que estamos vivendo em plena pandemia. A doença que afeta essa cidade monótona de tão pacata é a peste bubônica e o que mais interessa não são os personagens e seus destinos individuais, mas sua existência como coletivo. Não que sejam desinteressantes: padre Paneloux e sua crise religiosa; Rambert e sua evolução de egoísta preocupado com seus amores pessoais a voluntário no combate à peste; Grand e seu comportamento obsessivo, reescrevendo a mesma primeira sentença de seu livro várias vezes; Tarrou e sua busca por uma justiça sem vítimas; Cottard e sua progressiva insanidade, completamente confortável no desespero da peste e, da mesma forma, em agonia quando o isolamento acaba; e, finalmente, doutor Rieux, que funciona mais como símbolo da perseverança mantida em tempos difíceis, ainda que com o sacrifício da piedade; são todos personagens incríveis, mas que mais representam ideias que emoções, mais soam como arquétipos que como pessoas. Porém, isto faz parte da intenção de Camus ao tratar do combate comunitário do ser humano contra a crueldade insensível do mundo, que não poupa nem mesmo as crianças. O que resta a fazer quando não nos resta esperança e com isso, não existe futuro, apenas presente? Como manter a estabilidade quando o medo diante do desconhecido é maior que a confiança em si mesmo? Para os que sobrevivem, a resposta foi difícil: pensar antes na vida dos outros que na própria morte, revoltar-se contra o caos em nome do coletivo e não do individual.