spoiler visualizarRick Shandler 15/03/2024
Dom Casmurro - Machado de Assis
E a Capitu? Traiu ou não? Assim comecei a primeira resenha aqui, assim começo a centésima. Não tinha como o centésimo livro ser outro que não Dom Casmurro. Machado de Assis é o autor que me fez leitor. Se tem uma indicação que eu possa dar é essa: leia Machado.
Quando pensei em começar a postar resenhas, a ideia era começar por Machado. No fim das contas, acabou não sendo o primeiro livro aqui. Mas, de qualquer forma, comecei minha primeira resenha referenciando o Bruxo do Cosme Velho, e não poderia ser diferente. Machado de Assis é o escritor que marcou minha vida de leitor. Foi com ele meu deslumbramento com a literatura, que segue até hoje.
Enfim, Capitu traiu ou não? Como uma questão como essa pode repercutir por três séculos diferentes? E aí que reside o poder da literatura. Machado criou uma história tão bem construída que hoje chega a ser discussão de bar. Da impecável descrição do Rio de Janeiro do século XIX ao narrador nem um pouco confiável, Dom Casmurro é uma obra-prima que transborda genialidade em cada detalhe.
Dom Casmurro, advogado de ofício, nos narra sua acusação contra Capitu. Este é o cerne do livro, toda a construção de um caso que incrimine Capitu quanto ao término trágico do casamento. Na construção deste caso somos apresentados a personagens e cenas inesquecíveis na Rua de Matacavalos, um retrato do Rio de Janeiro do século XIX, onde se inicia a história de Bentinho e Capitu. A forma nostálgica e sentimental com que somos apresentados ao enredo nos entrega em uma primeira leitura uma história de amor, drama e traição. Agora, através de um olhar mais atento nas entrelinhas somos capazes de tirar muito mais da obra.
Primeiro, vem a já clássica questão. Capitu realmente traiu? O caso é todo tão bem montado ao longo de todo livro que fica fácil comprar a acusação de Dom Casmurro. Porém, não há qualquer prova, testemunho, indício, confissão. Nada. Há somente a lábia de Bento Santiago. Há quem compre e diga que Capitu traiu. Há quem não seja convencido pela história e veja nela mais um caso de ciúmes descontrolado. Mas, há quem vá além e não questione só a história, mas questione o próprio narrador. É nesta camada do livro que as coisas começam a ficar interessantes.
E se em vez de uma acusação contra Capitu, o livro for uma defesa de Dom Casmurro? Quem seria menos confiável para contar essa história do que o próprio? Machado nos apresenta o menos confiável de todos os narradores. Quem lê o livro pautado pela desconfiança com o narrador percebe uma forma ardilosa de contar a história que beira a vilania. O que, convenhamos, não cai mal para Dom Casmurro. Vamos lá, ele viu com bons olhos a morte da própria mãe, sempre agiu com total indiferença quanto a todos, menos quanto a sua obsessão que era Capitu, cogitou envenenar o próprio filho, pelo qual não nutria o menor sentimento e tratou de manter a maior distância possível, rogando-lhe lepra e comemorando sua morte precoce. Isso, sem nem entrar no mérito do relacionamento abusivo com Capitu, pautado pelo ciúmes, machismo e opressão. Isso tudo nós sabemos só pela versão de Bento, um tanto quanto parcial. Como seria a versão de Capitu? Parece que a alcunha de Dom Casmurro saiu barato.
Dom Casmurro entrega tudo que podemos esperar da literatura. É livro para se deslumbrar, é livro para discutir no bar. Machado era uma Bruxo. Tem que ler Machado. Tem que ler.