spoiler visualizarLaryssa234 01/01/2024
Magnífico e Grandioso
Machado de Assis é um dos maiores escritores brasileiros e Dom Casmurro é um dos seus romances mais conhecidos. Aclamada pela critica e pela academia, Dom Casmurro é uma obra muito lida no nosso país. No entanto, há uma distorção na interpretação desta obra. Quando lemos este livro, na escola, somos direcionados a interpretá-lo a partir da ótica traiu ou não traiu. Quantos não fizeram peças baseadas em Dom Casmurro discutindo a traição de Capitu?; quantos de nós não apresentaram trabalhos sobre isso nas escolas?; quantos não acharam que o livro se resume a esta questão? Acontece que este é um erro monumental.
O romance de Machado conta com um narrador em primeira pessoa. Bentinho, ou o Dom Casmurro, nos conta a história da sua vida. Então todos os outros personagens da trama são personagens de criação indireta. Ou seja, eles não se apresentam para nós a partir de um narrador imparcial. Pelo contrário: eles só surgem para nós a partir do que Bentinho quer narrar.
Portanto, todos os fatos, observações, características, diálogos, cenas, cenários, reflexões, comentários e digressões são obras da mente de Bentinho. Nós não conhecemos Capitu verdadeiramente. Conhecemos a Capitu de Bentinho. Conhecemos a Capitu que Bentinho quer que conheçamos. É por isso que a questão traiu ou não traiu é insolúvel, pois não temos a perspectiva imparcial para julgar a veracidade dos fatos.
E se essa é uma questão insolúvel, pensar muito sobre ela é perda de tempo. O que podemos refletir sobre a obra então?
O primeiro ponto é o auto engano. Bentinho, no inicio da obra, diz que perdeu o fio da meada da sua vida e deseja recontar a sua história neste livro. Na medida em que ele narra, surgem incongruências, contradições, mentiras ocultações... O que só prova o seguinte:
Bentinho estava enganando a si mesmo. Percebendo que sua vida foi um fracasso, ele tenta colocar a culpa em outras pessoas: sua mãe, seu amigo, sua esposa, seu filho... Desta forma, ele mente para si mesmo sobre a sua própria história. Tanto que, Casmurro significa teimoso. Um sujeito que não larga uma ideia por nada nesse mundo. Porém ele mesmo se contenta em nos dizer somente o outro significado de seu nome.
O sujeito mandara construir uma réplica exata de sua casa, em que vivera quando menino. Ele queria atar as duas pontas da vida, ligar sua velhice solitária à sua juventude e não consegue. Se bem viva confortável, é claro que não feliz ou satisfeito. Desse cenário, dos primeiros capítulos; surgem quatro figuras históricas:
Cesar, Nero, Augusto e Massinissa. Figuras que incitam
Bento a escrever memórias para evocar sombras inquietas do passado. Ora, as quatro figuras não tem nada de aleatórias. Todas as quatro traíram ou foram traídas com a morte. Temos um sujeito velho, sozinho e taciturno, evocando sombras sinistras do passado, incitado por bustos sanguinários pintados na parede de uma casa que mandara construir para resgatar algo da juventude.
Outro ponto fundamental da obra são as promessas não cumpridas. Lembrem -se que a história se inicia com o conflito da mãe de Bentinho, Dona Glória, tendo que cumprir sua promessa para Deus de que seu filho seria padre. Mas isto não acontece. Da mesma forma como Bentinho não reza a quantidade de orações que otereceu a Deus. Da mesma torma que Jose Dias descumpre o acordo com Dona Glória. Da mesma forma que Bentinho e Capitu não são fiéis as promessas uns aos outros.
Assim como a promessa não cumprida e o autoengano, o ciúme é um tema muito importante do livro. Bentinho desde cedo era um rapaz ciumento. Qualquer movimento que Capitu fizesse era suspeito. Já existe sobre ela uma fama de dissimulada, o que gera ainda mais desconfiança. No entanto, Bentinho em certo momento do livro começa a sentir atração pela esposa de seu amigo Escobar. E, logo depois, ele passa a dizer que era Escobar que se atraía por Capitu. Bentinho, em sua confusão mental, acaba projetando os seus próprios erros nos outros e faz isso durante toda a hostória.
Até mesmo seu nome, Bento Santiago, demonstra o caráter do personagem. Santiago, a junção de Santo + lago. Mais a frente Bento cita uma peça de Shakespere e relaciona com sua própria história. lago é um personagem de Otelo. lago engana Otelo fazendo-o acreditar que sua esposa o tinha traido. Otelo mata sua própria esposa inocente por culpa de lago. Talvez
Machado tenha querido sugerir que Bento fora um lago para si mesmo. Ele mesmo se enganara em relação a traição de Capitu. Ele recebera tudo dos céus e, por conta de sua casmurrice, arquitetara uma tragédia contra si próprio.
Bento descreve um quadro de seus pais, sua mãe está com olhar apaixonado pousado no esposo. Mas o pai está olhando para o espectador, exibindo-se porque uma mulher linda o queria. Será que essa era mesmo a expressão do pai ou Bento projetou sobre ele alguma coisa? A visão de felicidade de Bento era essa? A mulher amando o homem e o homem amando a si mesmo porque uma linda mulher o queria?
Os olhos de ressaca da Capitu; descritos por Bento são de ressaca maritima, quando o mar invade a terra firme, quando as ondas do litoral arrastam o que ali está para o mar. As águas ficam revoltas, instáveis, perigosas. A ressaca é a consequência mais remota de algo central, profundo. A violência relativamente branda das águas que transbordam esconde a violência mortal do mar profundo. Para Bento, Capitu era um mar revolto. O olhar de Capitu era uma onda escura cava, oca, vazia. E crescia. Bento se apequenava sempre que encarava Capitu, se sentia inferior a ela. Se aprendermos a ler com foco saberemos que o livro inteiro pode ser resumido a essa cena. Todos os complicados e ambíguos sentimentos de Bento em relação a Capitu.
Sua desconfiança. Nossa capacidade de penetrar o mistério. A subsequente morte de Escobar afogado, num mar bravio.
Para Bento sua existência não seria pouco mais do que
um plano do capeta que Deus deixara acontecer só porque estava entediado. Bento, portanto, depois de velho é: recluso, solitário e assombrado pelo passado.
Tem uma visão completamente cinica da vida, coisa que se poderia explicar tanto por uma traição de Capitu quanto por suas próprias tendencias. Quando novo: paparicado e mimado, acostumado a nunca ser contrariado. Belo partido para qualquer mulher, e não menos para Capitu
Tudo, portanto, já começa a ficar... ambíguo. Incerto. E então sabemos que não se trata de um narrador confiável. Por outro lado, Bento ser mimado e desconfiado não é prova inequívoca de que estivesse errado ou mentindo. Tudo é terrivelmente complexo.
Portanto, Dom Casmurro não é uma obra apenas sobre uma possível traição. Ela fala sobre autoengano, as promessas não cumpridas, uma vida de fracassos, o ciúme, a mentira, a desilusão. Dom casmurro não é um livro sobre personagens imaginários. É uma obra sobre nossa vida. Sobre todos nós. Sobre nossos erros, vicios e problemas.
Resumir Dom Casmurro ao traiu ou não traiu é ser reducionista. É não ser fiel a uma das maiores obras da nossa literatura.