Polly 11/05/2018
Dom Casmurro: paranoia ou traição? (#037)
Já perdi as contas de quantas vezes reli esse livro, que, aliás, é um dos meus “preferidos da vida”. A primeira vez que o li foi por influência total de um professor do ensino médio, eu devia ter 14 ou 15 anos. Professor Antônio falava de uma forma tão apaixonada sobre literatura, que era quase impossível não ser contaminada pelo “bichinho” da curiosidade. Lembro que ele era especialmente encantado por Machado de Assis e, por causa disso, acabei lendo todos os livros que eu tinha dele aqui em casa e também os que tinham lá na escola. E não foi diferente com Dom Casmurro.
Dom Casmurro é aquele tipo de livro que a cada vez que você o reler, você consegue alcançar uma nova perspectiva sobre ele. É um livro “vivo” que mesmo que se passem séculos e séculos, ele ainda assim vai continuar fazendo sentido. Isso acontece porque ele fala de algo intrínseco à alma humana, fala de sentimentos que todos nós sentimos ou sentiremos algum dia, mesmo que, às vezes, nós não nos orgulhemos tanto assim deles. E o mais fantástico de Dom Casmurro é que Machado de Assis não nos deixa nenhuma brecha para certezas. Com as mesmas palavras, Capitu pode ser culpada ou inocente. E tal sentença só depende do leitor, da “bagagem” que ele carrega na vida.
É certo que desde a sua primeira publicação, no ano de 1900, até a década de 1960, quando uma nova interpretação foi dada pela americana Helen Cardwell, Capitu era definitivamente culpada. Bentinho era, sem sombra de dúvidas, a vítima da história, mesmo ele sendo o único a ter voz na narrativa. O machismo que vigorava na sociedade, por décadas a fio, impediu que a maioria das pessoas conseguisse identificar a genialidade machadiana. O tempo inteiro o próprio Bentinho, enquanto nos conta a história, desdiz o que, ao que parece, ele tem certeza: a traição de Capitu e Escobar.
Eu, particularmente, sou da opinião de que Capitu era inocente. E logo deixo avisado que esse texto é praticamente uma defesa dela. Desde a primeira vez que o li, Bentinho não conseguiu me convencer de que ele era a vítima. Confesso que pareço com Bentinho muito mais do que gostaria. Tenho, infelizmente, um quê de Casmurro e consigo identificar um ciumento de longe (olha a minha pretensão!...). Desconfiado por natureza, o ciúme é presença constante no coração e na mente do Casmurro. E todo mundo sabe que quando o ciúme entra numa relação, o amor sai pela outra porta.
Os motivos pelos quais Bentinho condena Capitu são, no mínimo, duvidosos. O momento no qual ele tem certeza da culpa da sua esposa é durante o enterro do Escobar. Capitu chora e não podia ser diferente. Afinal, Escobar é também um amigo para ela, além de ser marido de Sancha, sua melhor amiga. Sem contar na habilidade humana, sobretudo nas horas de dor, de se colocar no lugar do outro. Quem sabe Capitu, naquele momento, não se enxergasse em Sancha ao se imaginar perdendo Bentinho?
Outro fato em que se fundamenta a certeza de Bentinho são os olhos de Ezequiel, que a princípio, era tido apenas como um bom imitador. O menino era bom em imitar José Dias e a prima Justina, mas era incomparável na imitação a Escobar. O pai até então nada de estranho achava, mas depois do episódio do enterro, o Casmurro começa enxergar Escobar no olhar e nos trejeitos do pequeno. Betinho simplesmente não suporta a visão do filho, ao ponto de até tentar oferecer-lhe veneno.
Mas, como já disse, nosso narrador duvida toda hora da sua certeza. Por exemplo, ele põe em dúvida se aquela semelhança entre Ezequiel e Escobar é mesmo fruto da traição de Capitu ou apenas coincidências estranhas da vida. Quando ainda está no seminário, Bentinho vai visitar Capitu na casa de Sancha, que na ocasião estava doente. Num quadro na parede, está uma pintura da falecida mãe da enferma. Bentinho repara como é surpreendente a semelhança entre a defunta e Capitu, mesmo elas não tendo parentesco algum. Mais tarde, alguns capítulos depois, Bentinho evoca essa mesma constatação para por a prova a sua certeza.
Vale ainda ressaltar que é a própria Capitu que constata a semelhança entre Ezequiel e Escobar. E ela mesma comenta isso com o marido. Assim, fiquei imaginando: a troco de que ela incutiria uma dúvida na cabeça do marido, caso fosse realmente culpada? Sobretudo, sendo Bentinho ciumento do jeito que era... Quem não lembra do episódio dos braços de fora? Se não o lembra, vide o capítulo 105. Bentinho é paranóico!
Bem, eu até poderia escrever um outro livro, explicando os motivos por que a Capitu é inocente. E um outro alguém poderia escrever outro, explicando por que ela é culpada. E usando os mesmos fatos para isto! É isso que a genialidade de Machado de Assis faz... Mas acho que vou parar por aqui. Acho que meu papel está feito. Espero ter lhe despertado a vontade de ler a obra, se é que ainda não a leu. E também espero ter lhe convencido que Capitu era inocente, mesmo que ela tivesse olhos oblíquos de cigana, e culpado mesmo nessa história era o ciúme de Bentinho.
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