Fabio Shiva 01/09/2021
Profético e... angustiante!
Todo livro tem a sua hora e vez de ser lido. Às vezes uma leitura não nos agrada ou, pior ainda, não nos diz nada. Mas a culpa não necessariamente é do livro, nem nossa: simplesmente não era o momento certo e propício de ler aquele texto específico.
Pensei muito nisso ao finalmente engrenar na leitura dessa impressionante “Angústia” de Graciliano Ramos, que terminei com a consciência de estar diante de uma das obras-primas de nossa Literatura. Contudo tentei ler o livro pela primeira vez em 2017, e a leitura se arrastou até estagnar na página 38. Dessa vez, no entanto, li quase que prendendo a respiração, de tanto suspense, e tive que me conter para não grifar todas as páginas. O que me trouxe uma inevitável pergunta: uma vez que o livro continuava o mesmo, o que mudou em mim e no mundo entre uma leitura e outra?
É certo que nesse período relativamente curto de 4 anos mudou muita coisa. Em 2017, por exemplo, Jair Bolsonaro era apenas mais um dos “malucos” que infestam a política brasileira, potencialmente perigoso, sim, mas acima de tudo inexpressivo... Quadro bem diferente é o que tenho diante de mim nesse 2021, quando infelizmente já me acostumei a ver tantos parentes e pessoas que eu admirava defendendo as ideias abomináveis e absurdas desse mesmo “maluco”, hoje alçado à presidência do Brasil e promovendo tamanho despropósito de malefícios que as gerações futuras terão dificuldade em calcular...
Pois imaginem o meu espanto e surpresa ao encontrar nesse romance de 1936 a figura de Julião Tavares, que bem poderia ser descrito como o maior bolsominion da Literatura Brasileira:
“Julião Tavares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atribuíam. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor.”
“Esse Julião, literato e bacharel, filho de um deles, tinha os dentes miúdos, afiados, e devia ser um rato, como o pai. Reacionário e católico.
– Por disciplina, entende? Considero a religião um sustentáculo da ordem, uma necessidade social.
– Se o senhor permite...
E divergi dele, porque o achei horrivelmente antipático.”
“O que não achava certo era ouvir Julião Tavares todos os dias afirmar, em linguagem pulha, que o Brasil é um mundo, os poetas alagoanos uns poetas enormes e Tavares pai, chefe da firma Tavares & Cia., um talento notável, porque juntou dinheiro. Essas coisas a gente diz no jornal, e nenhuma pessoa medianamente sensata liga importância a elas. Mas na sala de jantar, fumando, de perna trançada, é falta de vergonha. Francamente, é falta de vergonha.”
“E um cachorro daquele fazia versos, era poeta.”
Ler sobre o cinismo cheio de empáfia de Julião Tavares me ajudou a compreender atitudes até então inexplicáveis de tantos parentes e ex-amigos. E principalmente, me ajudou a perceber como Bolsonaro é apenas o catalisador dessas sombras e imundícies psicológicas que atendem pelo nome de “bolsonarismo” e que, é forçoso reconhecer, estão entranhadas como piche em nossa identidade nacional. Tomar consciência disso é renovar a confiança no processo de cura que vem a reboque do próprio bolsonarismo: só podemos curar aquilo que somos capazes de reconhecer como doença. E por isso, dentre tantos outros motivos, dou graças à Literatura!
Para não deixar dúvida de que os atuais problemas do Brasil (e do mundo) já estavam ativos há muito tempo, vejam que impressionante descrição Graciliano Ramos nos traz do fenômeno das Fake News, décadas antes da Internet e antes até mesmo da televisão:
“Até ali, àquela hora, surgia o nome do vizinho. O que mais me aborrecia era não saber se as pessoas que falavam dele acreditavam na história suja. Enchia-me de raiva por não conseguir me livrar dos fuxicos. Desprezava involuntariamente o desgraçado Lobisomem. Se aquilo fosse verdade? Não tinha verossimilhança, era aleive, disparate. Mas tanta gente repetindo as mesmas palavras.... E casos iguais já se tinham visto.”
Como um toque de ironia involuntária, até o terraplanismo é sugerido no texto de Graciliano:
“As aparências mentem. A terra não é redonda?”
Preciso dizer que esse assunto todo é nota de rodapé em “Angústia”, que trata de questões muito outras e mais amplas. Preciso mencionar, sobre a estrutura geral da trama e dos personagens, um recurso que achei genial para expressar a opressiva sensação de apequenamento, que acompanha toda a narrativa. O avô do protagonista-narrador chamava-se Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, era realizador de façanhas boas e más. Já com o pai do protagonista começa o reducionismo:
“E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede.”
À redução na extensão do nome acompanha uma diminuição na própria dignidade humana do personagem. E daí calcule-se o efeito quando descobrimos que o narrador da história chama-se simplesmente Luís da Silva! É especialmente relevante o arqui-inimigo de Luís ser o já mencionado Julião Tavares, que como ele só tem dois nomes, mas traz um aumentativo em seu nome de batismo que o torna psicologicamente maior que Luís.
Se eu fosse falar tudo o que esse livro me fez pensar, teria que escrever outro livro. Por isso me limito a destacar ainda as pérolas ásperas que a leitura de Graciliano proporciona para aqueles que amam ler e escrever:
“Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.”
“Distraía-me com leituras inúteis. Quando me caía nas mãos uma obra ordinária, ficava contentíssimo:
– Ora, muito bem. Isto é tão ruim que eu, com trabalho, poderia fazer coisa igual.
Os livros idiotas animam a gente. Se não fossem eles, nem sei quem se atreveria a começar.”
“– Fulano é bom escritor, Luís?
Quando não conheço Fulano, respondo sempre:
– É uma besta.
E os rapazes acreditam.”
“A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou como mentiras.”
“Esforçava-me por me dedicar às minhas ocupações cacetes: (...) ler romances e arranjar uma opinião sobre eles. Não há maçada pior. A princípio a gente lê por gosto. Mas quando aquilo se torna obrigação e é preciso o sujeito dizer se a coisa é boa ou não, não há livro que não seja um estrupício.”
“O que eu precisava era ler um romance fantástico, um romance besta, em que os homens e as mulheres fossem criações absurdas, não andassem magoando-se, traindo-se. Histórias fáceis, sem almas complicadas. Infelizmente essas leituras já não me comovem.”
Ainda nesse tema da literatura, é incrivelmente profética essa passagem em que Luís fica obcecado pela ideia de ser preso e escrever um livro na cadeia:
“Faria um livro na prisão. Amarelo, papudo, faria um grande livro, que seria traduzido e circularia em muitos países. Escrevê-lo-ia a lápis, em papel de embrulho, nas margens de jornais velhos.”
“A ideia do livro aparecia com regularidade. Tentei afastá-la, porque realmente era absurdo escrever um livro numa rede, numa esteira, nas pedras cobertas de lama, pus, escarro e sangue. (...) O livro só poderia ser escrito na prisão.”
Esses trechos são duplamente impressionantes, quando sabemos que “Angústia” foi publicado quando Graciliano Ramos de fato havia sido preso pelo governo de Getúlio Vargas, pouco antes da implantação a Ditadura do Estado Novo, e que essa experiência na prisão acabou gerando talvez a maior obra de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere” (https://youtu.be/Qz2iZs7cea4).
Encerro essa longa resenha com mais algumas citações poderosas da pena desse grande autor brasileiro, com gratidão e orgulho por ter nascido no mesmo país que ele:
“Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu.”
“Quando a realidade me entra pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba.”
“Para que um homem discutir, se não é obrigado a isso?”
“Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim.”
“Movemo-nos como peças de um relógio cansado. As nossas rodas velhas, de dentes gastos, entrosam-se mal a outras rodas velhas, de dentes gastos.”
E viva Graciliano Ramos!
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2021/09/angustia-graciliano-ramos.html
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