lucasfrk 24/02/2022
Ilíada ? Resenha
Há alguns dias alguém havia me perguntado sobre o se tratava Ilíada (quando eu havia dito que estava começando a leitura) e outra pessoa respondeu por mim, dizendo: ?é sobre a guerra de Troia?. Acontece, no entanto, que a obra atribuída a Homero ? essa figura mística e ambígua que não se sabe direito se existiu de fato ? se trata muito mais do que a retratação de uma simples guerra, além do fato de que sua localização espaço-temporal se dá um período de apenas algumas semanas (mais precisamente cinquenta dias), de modo a retratar a apenas uma parcela do fim do conflito que, segundo o mito, durou cerca de dez anos. Junte-se ao fato de que sua gênese radica na ira de Aquiles, na glória de Heitor (e sua derrocada), além de conflitos internos entre deuses com deuses, mortais com mortais, e, evidentemente, deuses com mortais.
É certamente considerada a primeira obra da literatura ocidental, um poema épico, que o tempo todo exalta a capacidade de combate dos guerreiros (embora prevaleça um caráter mais ambíguo por parte da narração do eu-lirico), composto por cerca de 15 mil versos, em hexâmetro dactílico (seis pés métricos iguais por verso), estilo convencional adotado pela poética heroica da Grécia, por volta dos anos 700 a.C, no auge da Idade do Bronze. A narrativa é subdividida em 24 cantos, que funcionam como capítulos. O conflito central, já iniciado antes do enredo da Ilíada, se dá a partir do cerco dos gregos (aqui também denominados Aqueus, Argivos, Dânaos, etc.) à sacra cidade troiana de Ílion (atualmente localizada no noroeste da Turquia) ? daí o aportuguesamento do título do livro ? e aborda o episódio denominado como a Ira de Aquiles. A guerra se dá por meio do rapto da princesa Helena, esposa do loiro Menelau (?excelente em auxílio?), rei de Esparta, por París, o filho do rei troiano Príamo.
Dentre algumas passagens importantes e enfatizadas na Ilíada estão o conflito dos heróis Aquiles e Heitor (que dura poucos versos, dada sua expectativa eloquente); as honras fúnebres ao companheiro do Pelida (designação dada ao herói Aquiles, que é filho do mortal Peleu com a deusa nereida Tétis), Pátroclo, um dos Mirmidões, que morre pelas mãos de Heitor (uma passagem altamente emocionante, que dura um canto inteiro, em contraste com a passagem citada anteriormente). Além disso, como já induzido neste texto, Homero usa diversos sinônimos para designar os combatentes gregos ? como Aqueus, Dânaos, aquivos, acaios, argivos e helenos ? e os troianos ? teucros e troas.
Evidentemente, o narrador privilegia, ao decorrer dos cantos, o povo grego em detrimento do povo troiano, em que até mesmo o número de combatentes mortos (e consistentemente narrados) é maior do lado dos troianos, embora mais da metade de seu conteúdo evidencie a glória de Troia em cima dos Aqueus (por não contarem mais com a presença do Pelida Aquiles). Percebe-se um grande número de termos compostos pelo sufixo ?-ida?, que possui o significado ?filho de? (tal como Cronida, filho de Cronos; Atrida, filho de Atreu; Menecida, filho de Menécio; ou Pelida, filho de Peleu), que usarei a partir daqui.
Dentre os heróis gregos se destacam os irmãos Atridas (filhos de Atreu), comandantes dos gregos, o general, rei de Miscenas, Agamêmnon, líder da coalizão grega, e Menelau, o ultrajado; Ulisses (protagonista da ?Odisseia?), soberano da ilha de Ítaca, e um dos mais ardilosos guerreiros da epopeia grega; Diomedes (o Tidida, filho de Tideu), sobrepujando-se no canto V, onde ele consegue ferir até mesmo dois deuses olimpianos que estavam do lado dos troianos (no caso, Afrodite e Ares); o ancião Nestor, o mais experiente dos heróis gregos, de grandes conselhos; os ajantes, a dupla composta pelos heróis de mesmo nome: Ajax Telamônio (filho de Telamon) e Ajax Oileu, grandes guerreiros homônimos, que possuem passagens que exaltam sua valentia em batalha, de modo que Ajax Oileu foi dado, por Homero, como ?o mais valente e o mais belo de todos os Dânaos guerreiros, se excetuarmos, apenas, o herói impecável, Aquiles?; Pátroclo, o Menecida (filho de Menécio), o amado escudeiro do herói Aquiles, que, após causar grandes baixas ao exército troiano, é morto por Heitor. Já do lado troiano, se destacam Páris (também denominado de Alexandre), filho do rei Príamo e esposo de Heleno, após seu rapto, e muita vezes destacado com injúrias pelos próprios parentes pela sua covardia em fugir da batalha; Eneias, o mais famoso dos chefes troianos ? filho da deusa Afrodite e de Anquises, rei da Dardânia ?, salvo pelos deuses diversas vezes durantes os combates, e que, após a queda de Troia, viaja pelo Mediterrâneo até a península Itálica, onde, fundaria os princípios do Império Romano (viajem narrada na Eneida, do poeta Virgílio); além do próprio Heitor, o comandante das tropas de Troia na guerra contra os Gregos, autor de feitos notáveis durante o cerco de Troia e era o terror dos seus inimigos. Aliás, um dos diálogos mais cativantes e envolventes do livro certamente é a despedida do herói Heitor com a esposa Andrômaca, com o seu filho pequeno, que possui a premonição de que seu marido irá perecer em uma guerra que ele nem começou.
É claro que a Ilíada não se trata apenas de um breve evento da guerra de Troia, mas também, devido à grandeza magistral da narração homérica, abre uma janela para paisagens temporais de imensa vastidão e com personagens, bem como eventos, marcados no imaginário popular ocidental. Antes mesmo de existirem obras tão vastas quanto, como o Novo Testamento, o ?Senhor dos Anéis?, ou ?Game of Thrones?, os versos das epopeias homéricas resistem de forma pulsante e ainda influencia, por meio dos argumentos das sagas gregas, as obras literárias, cinematográficas, e afins, da atualidade (ou uso de nomes de marcas de produto de limpeza como Ajax, ou mesmo expressões cotidianas como quando alguém indignado inferiu o ?calcanhar de Aquiles? de outrem).
O leitor também é transportado diretamente para a intimidade dos deuses, com suas relações familiares complexas e às vezes cômicas (vide as lamúrias de Ares, o deus da guerra, ferido pelo mortal Diomedes, a Zeus, de forma vergonhosa; ou o espancamento que Hera, esposa de Zeus, denota a Ártemis, em um tabefe divino, que a deixa aos prantos). A Ilíada é, acima de tudo isso, uma demonstração de questões do ser humano, presente até mesmo nas relações dos próprios deuses, que parecem ceder a forças maiores do que até eles próprios. Se trata da tragédia de Aquiles, irritado com Agamêmnon, por tomar a jovem Briseida, como despojo de guerra, então o desaventurado semideus se retira da batalha, e os troianos passam a impor grandes derrotas aos gregos. Inconformado com a reviravolta que se apossa, o escudeiro Pátroclo vai ao combate e, após desferir grandes baixas aos troianos, acaba morto por Heitor. Possuído pelo ódio, Aquiles retorna à batalha sedento por vingança, apesar de todas as previsões sinistras dos oráculos, e dá prontidão ao seu destino fúnebre e amargo. Esta edição em versos da Ilíada, com tradução do helenista português Frederico Lourenço, é acompanhada de ótimos textos introdutórios, além de uma lista das principais personagens e alianças bélicas e mapas que bem ajudam o leitor a compreender a geografia homérica.
Todos os cantos têm sua importância narrativa, mas alguns deles se sobrepõem pela própria eloquência frisante que o poeta insere. O Canto I, por exemplo, em que nos é introduzido os conflitos bélicos em Troia e as suas motivações; o Canto VII, que possui alta tensão, devido ao duelo entre Ajax e Heitor; o Canto XIX, que traz a reconciliação entre Agamêmnon e Aquiles; além do Canto XXII, em que se dá o catártico arremate do duelo entre Aquiles e Heitor, e uma morte que selaria o destino da longa guerra. Toda a estrutura do poema é muito bem transmitido e elaborado, de modo a evidenciar um grande apuro estético, carregando um impacto épico e narrativo através de uma história grandiosa até mesmo universal, por conta de seus temas: tais como amizade, honra, a hospitalidade, o matrimônio, além, claro, da questão materialista do conflito (em que tudo é recompensado por bens, jóias, taças ungidas de ouro, ou casamentos). Dessa forma, Ilíada transmite a alma humana de forma quase impecável, de forma que sua longevidade seja absolutamente compreensível.