Rayssa 30/12/2021Já viu alguém levar um tiro e não sangrar?Uma história brilhante e onírica repleta de metáforas sobre o amor, a solidão, o isolamento sentimental humano que no mundo contemporâneo se alastra mais e mais.
Creio que o livro também trata da dor causada por uma situação traumática. Sobretudo no caso de Miu e sua experiência na roda gigante. Naquele momento, nasce uma fantasia criada pelo Ego de Miu para cobrir um trauma sofrido por ela - um tipo de violência física, sexual ou não - e a consequência desse ato que gerou uma dor tão grande (quem sabe também uma depressão) a ponto de acabar com a vida e a personalidade que ela tinha antes, dividindo-a em duas pessoas: antes e depois do trauma. Um ato tão significativo em sua vida que a fez amadurecer de forma drástica do dia para noite, daí a transformação da cor de seus cabelos para o branco.
Nesse sentido, Sumire também parece passar por uma grande rejeição. Ela se esforça para superar o medo de amar uma mulher, arrisca extravasar seus sentimentos e leva um sofrido "não". Por tal motivo, ela desaparece da vida de todos. Talvez para tentar superar esse trauma e/ou para apenas viver, deixar o mundo recluso dos livros e tentar encontrar seu verdadeiro Eu no mundo a fim de tornar-se a escritora que sempre sonhou ser.
O final, a meu ver, trata-se de outra metáfora. Sumire cita que não é possível levar um tiro sem sangrar. Isso significa fazer uma escolha e não sofrer as consequências desse ato. Ora, toda escolha que fazemos tem suas consequências, boas ou más, isso é arriscar-se a viver. Dessa forma, acho que no fundo Sumire sabia que K. era apaixonado por ela e mesmo assim insistiu na amizade sabendo que podia magoá-lo. K., por sua vez, levou a "facada" do "coração de pedra" de Sumire e sangrou por dentro, isto é, sofreu a dor de ter seu amor rejeitado por ela.
Os três personagens são solitários e tentam encontrar um no outro a solução para suas carências internas. Em um mundo ideal, todos viveriam felizes para sempre se amando. Mas, no mundo real, as coisas acontecem de forma caótica, não temos controle sobre os sentimentos dos outros que, aliás, estão tão ocupados com as próprias mazelas. A solidão aí se intensifica pelo medo de deixar-se sentir e sangrar.
São tantos simbolismos que não consegui tirar tudo nessa primeira leitura, vou ter que reler futuramente. Ainda assim, fiquei absolutamente impactada pela riqueza dessa leitura. A riqueza de trazer temas tão fortes e pertinentes, mas sob um olhar tão sensível. Murakami está se tornando um dos meus autores favoritos da vida.