Marcos Pinto 22/06/2016A coisificação das pessoasHá livros que você gosta e há outros que você levará para a vida toda. Para mim, São Bernardo está neste grupo. Minha primeira leitura da obra foi há alguns anos e, desde então, cada releitura torna o livro ainda mais magistral para mim. O motivo? Explicarei cada detalhe.
Nessa obra, acompanharemos a vida de Paulo Honório. Ele, a princípio, era uma criança pobre vinda de um lugar simples. Porém, com o tempo, entende bem a estrutura capitalista e, com uma dose de audácia e inteligência, cresce na vida de maneira quase assustadora. Ele chega ao topo; tão alto que se torna quase inalcançável.
Ao conquistar tudo que queria, Honório ainda quer mais. Contudo, não há mais para ser ganho. Aliás, ele começa a perceber que quando chegamos muito alto, mais alto do que todos, ficamos sós. Paulo, em primeira pessoa, narra a sua vida, a sua trajetória, de garoto pobre ao topo da cadeia alimentar.
“Pouco a pouco ia perdendo os sinais de inquietação que a minha presença lhe tinha trazido. Parecia à vontade catando os defeitos dos vizinhos e esquecido do resto do mundo, mas não sei se aquilo era tapeação. Eu me insinuava, discutindo eleições. E possível, porém, que não conseguisse enganá-lo convenientemente e que ele fizesse comigo o jogo que eu fazia com ele. Sendo assim, acho que representou bem, pois cheguei a capacitar-me de que ele não desconfiava de mim. Ou então quem representou bem fui eu, se o convenci que tinha ido ali politicar. Se ele pensou isso, era doido” (pp. 36-37).
Nessa obra, acompanhamos a coisificação de Paulo. Ao passar das páginas, na proporção que ele ganha sucesso e dinheiro, mais próximo de uma coisa ele se torna. Duro, áspero, rude... Essas são apenas algumas características que o acompanham em sua trajetória. A cada pessoa que ele manipula ou explora para angariar capital, seu caráter se corrompe um pouco mais.
Paulo se deixa tornar tão próximo de uma coisa que já não consegue ver-se mais sendo amado. Porém, ainda assim casa-se. Um casamento de conveniência, vale ressaltar; mas a união é selada. O seu contraste com sua esposa o destrói ainda mais, o deixa ainda mais duro e angustiado, pois ela é tudo o que ele nunca será. Desta forma, ele se torna ainda mais áspero, principalmente com ela.
A aspereza de Paulo é tão grande que se reflete na escrita da obra. Como o livro é narrado em primeira pessoa, acompanhamos também na escrita o tornar-se objeto, o endurecimento. Isso resulta em uma prosa seca, direta, sem muitos adjetivos e metáforas. Entretanto, ao mesmo tempo, a prosa é rica. Não pelas palavras, mas pelo caráter altamente psicológico. Em cada palavra vemos as nuances mais profundas de Paulo, deixando todo o escrito um escarro de sua alma.
“– Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída, é uma biblioteca. Afinal eu estou chovendo no molhado. O senhor, melhor do que eu, conhece a mulher que possui” (p. 173).
Quanta à parte física, talvez para combinar com o estilo da obra, a Record preparou algo bom, mas altamente objetivo. A capa é simples, mas com uma pequena ilustração que tem muito a dizer sobre a obra e o estado de espírito de Paulo. A diagramação é, assim como a capa, bem simples, mas eficaz, visto que as letras e espaçamento possuem um tamanho confortável. Não é belo, mas não deixa que as vistas fiquem cansadas, apesar do papel branco. Ademais, a revisão está excelente, o que é essencial para uma boa leitura.
Desta maneira, diante dos aspectos mencionados, considero São Bernardo uma obra que merece ser lida. Você encontrará certa dose romance, muita crítica social e uma escrita inteligente. Sem falar que Graciliano é um dos grandes autores que o Brasil já teve. Leve esse livro para casa, ele é essencial para a sua formação crítica como leitor.
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