Lucas 14/04/2023
O que fazer e o que não fazer: para Graciliano Ramos, a maturidade literária chegou cedo
Pessoalmente como leitor, é difícil para este que vos escreve falar sobre o alagoano Graciliano Ramos de Oliveira (1892-1953): ele possui tantos predicados como escritor e como homem que fica complicado esquecer a sua história particular para falar de sua obra. Acima de tudo, um sobrevivente de uma trajetória de vida com muitos traços dramáticos, Graciliano Ramos é um dos meus portos seguros em termos de literatura. Ter um livro dele nas mãos parece transmitir uma certeza de que a frustração passará longe de suas linhas.
Essa ideia sofre um certo abalo, entretanto, quando se está diante de S. Bernardo, obra lançada em 1934 e o segundo trabalho literário do autor. Espera-se, diante disso, um estilo mais "verde" e não tão profundo quanto o desenvolvido posteriormente por Graciliano Ramos no espetacular e atemporal Vidas Secas (1938). Felizmente, o escritor não passou por esse problema, pois a obra já tem o nível de maturidade que se espera de um livro escrito por ele.
O enredo é simples: S. Bernardo é escrito em primeira pessoa por Paulo Honório, um alagoano do interior típico do final do século XIX. Os relatos dos seus primeiros anos são ignorados, mas ele possui pais desconhecidos e vivia vagando pelo mundo, com exceção de alguns momentos onde era amparado por Margarida, uma doceira que desenvolve com Paulo uma relação fora dos padrões do seu posterior comportamento. Quando criança, o protagonista era guia de um cego e ajudava a vender doces para sobreviver. Mas na idade adulta acontece algo que, se não é tão focado pela narrativa, acaba sendo fundamental para o caráter de Paulo Honório: ele, por ciúmes, esfaqueia um homem.
Este ato é o prelúdio da personalidade do protagonista-narrador: explosivo, trabalhador e determinado, ele aglutina para si características por vezes conflitantes, mas que denotam uma grande complexidade em sua construção (é o maior traço da maturidade literária precoce de Graciliano Ramos). Ao ser preso pelo esfaqueamento, ele aprende na reclusão a ler e a escrever, o que é a influência literal que o ato causa ao personagem, que nunca tinha sido (e nunca foi, de fato) muito ligado às letras.
Ao invés de pavimentar um caminho eventualmente diferente, a obtenção do alfabetismo despertou um espírito voraz em Paulo Honório. Ele regressa à Viçosa, sua cidade-natal (e que existe de fato, próxima de Maceió) e passa a contemplar a fazenda São Bernardo, local onde ele já havia trabalhado quando adolescente. A propriedade, então decadente, era gerida por Luis Padilha, indivíduo ocioso que acaba caindo numa armadilha mercantil proposta por Honório. De mãos atadas, Padilha acaba vendendo a propriedade a Paulo Honório, que prospera usando métodos bem questionáveis.
Neste e em vários outros momentos, Graciliano deixa nas linhas uma sutil crítica ao desenfreado espírito capitalista, que não pondera esforços ou escrúpulos em busca de um objetivo material. Travestido de um discurso individualista, de que tudo pode ser justificado ou avalizado se obtido com trabalho duro, esta marca que Graciliano Ramos usa para construir seu protagonista de S. Bernardo pode ter a ver com o seu futuro dentro do Partido Comunista Brasileiro (o autor chegou a ser preso pela ditadura de Getúlio Vargas em 1936), mas, se tomada num sentido menos político, ela inegavelmente conduz a várias reflexões válidas.
A que preço se vence na vida nesse aspecto mais material? A trajetória final de Paulo Honório responde esse dilema de forma magistral. Mas a sua secura e rigidez com relação aos seus "valores" sucumbem diante de Madalena, professora pela qual ele se encanta (não se apaixona por ela, isso parece inconcebível para Honório). Ao trazer tanta doçura e altruísmo diante de um mundo tão fechado, a secura e rigidez ressurgem com uma nova capa: a do ciúme doentio. Nem mesmo o filho do casal ameniza essa paranoia e ela arrasta todos os personagens do livro para um acontecimento impactante ocorrido no final da obra.
Paulo Honório era alguém rodeado de pessoas, como o capataz Casimiro Lopes, o padre Silvestre, o advogado Nogueira, o contador Ribeiro, o jornalista Azevedo Gondim, além dos já citados. Mas tudo, inclusive essas pessoas, se distanciam do protagonista... Algo natural na vida de todo mundo, mas que Graciliano Ramos não dramatiza, apenas naturaliza. O protagonista mesmo, é alguém que desperta certa aversão, mas não necessariamente ódio. Paulo Honório, que nunca foi um homem de fé ou um herói, encontra nas letras e na humildade da escrita das suas memórias um meio de encarar a vida após os seus cinquenta anos. Para alguém tão duro, teimoso e longe de ser uma pessoa correta, o peso da pena utilizada para escrever torna-se pesado e parece que, a medida que Paulo adentra nestas memórias, o peso parece ser ainda maior. Nota-se um personagem complexo, portanto, cheio de dilemas, eventuais arrependimentos e uma mente materialista em excesso, o que lhe traz muitas agruras.
S. Bernardo é um livro maravilhoso, é Graciliano Ramos no auge da sua forma já no seu segundo livro. Um enredo simples, duro e extremamente reflexivo, capaz de ensinar várias coisas, seja por meio de exemplos ativos (daquilo que se deve fazer) ou através de modelos de conduta imprópria, que ensinam aquilo que não se deve fazer ao se levar uma vida de muito trabalho e objetivos meramente materiais. Nesse choque, vemos uma narrativa direta e crua, que tal como a vida de nós todos, não é marcada somente com esplendores ou finais felizes.