Lucas 01/10/2018
Sentindo na pele a realidade desesperançosa de um presídio: Um relato do "homem", não do autor
Nenhuma experiência é realmente compreendida se não for sentida na pele. Este é um fato secular, compactuado pelo eterno Fiódor Dostoiévski (1821-1881) por meio de Memórias da Casa dos Mortos, sua obra de 1862 que é um dos maiores símbolos das chamadas memórias carcerárias da literatura.
Dostoiévski era e ainda é tido na Rússia como um escritor que acima de tudo olhava para o povo mais humilde, desprendendo seu olhar da questão mais óbvia de uma boa narrativa (montar uma trama que faça o leitor ter apego ao texto). Boa parte dessa sua característica popular pode ter advindo de um experiência terrível, que o aproximou de si mesmo e de uma parcela importante da miséria de seu país. Sob acusação de subversão, o já popular escritor (havia publicado quatro romances até então) foi preso, em 1849. Sua prisão e posterior condenação foi cercada do bizarro e do imponderável: o czar Nicolau I condenou ele e boa parte de seus companheiros de discussão literária (o chamado Círculo Petrashevski) à pena de morte por fuzilamento. A sentença seria aplicada no final daquele mesmo ano, mas quando já estava para ser fuzilado na prisão, surgiu a informação de que a pena seria convertida em trabalhos forçados e posterior serviço militar. Tal fato (a conversão da pena) tinha sido decidido com bastante antecedência, mas foi mantida em segredo propositalmente. Por muito pouco, portanto, a humanidade seria privada de um dos seus maiores escritores por uma simples leitura pública de material contrário ao Império Russo.
O autor foi, então, levado à Sibéria para cumprir seus anos de trabalho forçado, em prisões paupérrimas, ainda mais se for levado em conta o imenso frio que lá faz no inverno. O tempo total de reclusão de Dostoiévski foi de quase dez anos, mas, ao contrário do que se pensa, o regime de trabalhos forçados durou até o começo de 1854. A partir daí, a pena se baseou num serviço militar, inicialmente por tempo indeterminado.
Independente do tempo, a prisão atuou fortemente no então jovem Dostoiévski (tinha apenas 28 anos quando foi preso), não só no aspecto físico (foi lá que ele desenvolveu a epilepsia, que o acompanhou até o fim da vida) e pessoal (foi durante o serviço militar que ele casou-se pela primeira vez, com Maria Dmitriévna, falecida em 1864), mas também e principalmente no seu estilo de escrever. O desespero, a loucura, os surtos psicóticos e o niilismo, todos tão presentes no meio carcerário, acabaram formando a tônica de suas obras no período pós-prisão, as quais são, indiscutivelmente, os maiores símbolos de sua carreira literária. Esta mudança se faz perceptível em Memórias da Casa dos Mortos, a obra dedicada a este período de grande dificuldade de sua vida. Sem parecer literal (é genial o estratagema que conduz a isso e que é construído no primeiro capítulo do livro), Dostoiévski monta uma narrativa em primeira pessoa repleta de crueza, dor e desesperança, marcas registradas do seu tempo de cárcere.
Tal narrativa tem tudo isso e o que é de mais simbólico em se tratando do autor. Diante ainda da realidade carcerária que serve de pano de fundo, há também espaço para reflexões de validade secular, capazes de desconstruir paradigmas legais que servem de discussão ainda hoje. A percepção das penas, por exemplo, é algo vago e muito íntimo de cada preso. Um ano de reclusão não são 365 dias de cerceamento de liberdade para todos os reclusos: por características próprias de cada um, sejam relacionadas à influência social ou ao delito em si, o tempo de pena pode ser encarado até com displicência, dependendo do elemento. Outro ponto muito comentado é a subjetividade oculta que há na punição por prisão. Afinal, a reclusão é um processo corretivo de homens que infringiram a lei? Ela é uma simples ferramenta que serve para privar a sociedade da convivência com estes "elementos subversivos", que hoje em dia teriam outros nomes, ou nem uma nem outra coisa?
Como toda abordagem que convida a reflexão, mas que jamais esgota o tema, Dostoiévski também expõe o lado "menos humano" dos presos, destacando seus erros e condutas que os conduziram a tal estado. A questão do cárcere em si volta à cena trazendo consigo o "código moral" próprio dos presos, que levavam muito em conta aspectos externos (que teoricamente não fariam diferença alguma na reclusão) dos seus colegas de cela, em essência a origem de cada um (diga-se, realidade financeira).
O cárcere por trabalhos forçados, ainda presente em muitos países do globo (não em termos oficiais, óbvio), é fonte das maiores e mais indiscutíveis reflexões trazidas pelo narrador. As falhas da justiça são capazes de conduzir indivíduos inocentes a destinos irremediáveis: por mais que tais equívocos não sejam frutos da justiça em si, o verdadeiro ponto de discussão é a prevenção a estes erros, quer seja por meio de princípios universais (o direito à legítima defesa, com tempestividade) ou por estruturas jurídicas mais confiáveis, que se situem no meio-termo entre celeridade e efetividade. Como já citado, por um triz o mundo perderia um dos seus grandes literatos por uma mera divergência política, que não se associa diretamente ao raciocínio exposto, mas que ilustra bem o impacto que um erro jurídico pode causar, seja no aspecto social ou humano.
Memórias da Casa dos Mortos não é um livro "central" na carreira literária de Dostoiévski. Nem é, aliás, o seu primeiro trabalho após a saída da prisão (Humilhados e Ofendidos ocupa esse posto, lançado em 1861). Sua validade, todavia, está em ser um símbolo escrito do "homem" Dostoiévski, antes mesmo do "escritor". Ao ter nas mãos a bela edição da editora Martin Claret (traduzida direto do russo por Oleg Almeida), o futuro leitor deve estar ciente de tudo que está em suas páginas reconhece o valor da liberdade e os efeitos cáusticos que a sua restrição é capaz de causar aos mais diversos tipos de indivíduos.