spoiler visualizarIsa Beneti 29/10/2020
Clichê e melodramático na medida certa
Essa foi minha primeira leitura de Érico Veríssimo, e, apesar de minhas expectativas serem altas, eu não esperava encontrar uma história TÃO cativante contada por meio de uma linguagem tão simples, lírica e tocante! Não me impressiona que essa obra tenha sido uma das mais vendidas de sua época no Brasil, visto que sua trama e suas personagens são envolventes e coesas, tal como as de uma obra folhetinesca, fazendo-nos ficar presos ao livro. Mas, felizmente, esse romance não se limita às características superficiais de uma novela folhetinesca típica (como eu senti que aconteceu no calhamaço David Copperfield, por exemplo), embora, mesmo muito original, a história tenha sim os seus clichês.
Afinal, trata-se de um romance de formação sobre um menino de origem pobre que consegue ascender economicamente por meio do estudo e supera muitos dilemas morais ao longo de sua vida, até o ponto (desfecho) em que está moralmente/eticamente maduro, além de passar por experiências amorosas, falhando em algumas delas, até chegar à mulher perfeita e idealizada. Soa muito clichê, não é? Mas só quem já leu sabe que essa obra supera tudo isso.
Apesar da estrutura se aproximar à de um romance "água com açúcar" cheio de lições morais e reflexões superficiais, a profundidade da história de Eugênio vai muito além disso não somente no que tange às questões abordadas, mas também na linguagem, nas personagens e na própria estrutura textual.
Começando pela estrutura do texto, que é uma das principais características responsáveis por tornar o livro tão cativante. O livro se inicia no "meio" da história, quando Eugênio (que ainda não conhecemos, mas é o protagonista) recebe a notícia de que Olívia estava no hospital prestes a morrer. Assim, na ida para o hospital, o homem começa a relembrar os momentos mais marcantes de sua vida, com início na sua infância.
Já na primeira memória, em que o protagonista é humilhado pelos seus colegas de classe por estar com a calça rasgada, percebe-se a forte insegurança de Eugênio em relação ao seu exterior, uma das primeiras manifestações do que viria ser um grande problema interno ao longo de sua vida: o complexo de inferioridade. Por ser de família simples, filho de uma costureira com um alfaiate, o menino desde cedo se sente numa situação injusta, desprivilegiada e vergonhosa (sim, ele sente vergonha dos próprios pais), e já nessa idade coloca como objetivo de vida a ascenção social. Esse talvez tenha sido o maior equívoco de toda sua jornada: colocar o sucesso como fim, e não como meio/consequência.
É com esse objetivo em mente que Eugênio toma as principais decisões de sua vida, incluindo a de fazer medicina (escolha que inicialmente tinha um caráter mais humanitário, pois ele se inspirava no médico popular Dr. Seixas) e a de se casar com Eunice Cintra, filha de um famoso capitalista de Porto Alegre- local onde se passa a história. Entretanto, quando chega no ponto da vida que tanto desejava, com prosperidade financeira e certo reconhecimento, Eugênio percebe que continua atormentado pelo sentimento de inferioridade, sobretudo no meio em que vive, cercado de pessoas da mais alta classe, tal como o filósofo Acácio Castanho e o engenheiro Filipe Lobos.
Essas personagens secundárias são todas planas e não passam de metonímias de algumas ideias que vigoravam na época do texto: Castanho é a representação dos conservadores, que priorizam a cultura erudita e clássica, desprezando ideias radicais; Filipe representa a corrente futurista, a busca incessante pelo progresso em detrimento das relações humanas e todas as outras ideias nas quais governos como o Fascismo e o Nazismo se apoiaram para ascender no início do século XX; Eunice de certa forma também representa ideias mais modernas, sobretudo a corrente psicanalítica de Freud que vigoravam nessa época.
Inclusive, é muito interessante notar como o contexto histórico do romance, que se passa mais ou menos na época em que foi escrito (década de 1930), se insere na narrativa de maneira natural, mas sempre trazendo questionamentos. Exemplos disso são as cenas que se passam durante a violenta Revolução de 1923 (ocorreu no sul), as menções à primeira guerra durante a infância de Eugênio e as discussões frequentes sobre o antissemitismo. Além disso, o livro possui diversos diálogos entre as personagens em que cada uma delas se posiciona em relação a assuntos como Estética (Castanho é um grande crítico à modernidade e defensor da estética clássica), política (o "perigo vermelho") e sociedade (preconceito contra judeus). Essas questões não se limitam apenas aos diálogos, visto que têm "aplicação prática" na narrativa, a exemplo do personagem do judeu Simão e do gigantesco arranha céu "Megatério", o maior dos empreendimentos de Filipe e a grande representação da modernidade no Brasil.
Voltando à história, Eugênio se encontra completamente infeliz e culpado por ter realizado um casamento de conveniência. Além disso, ele mantém relações extraconjugais com Isabel, esposa de Filipe, o que aumenta ainda mais seu sofrimento moral. Apesar desse sofrimento, Eugênio ainda se sente preso a esse estilo de vida confortável, mesmo que superficial. Entretanto, um acontecimento o leva a querer mudar os rumos egoístas e vaidosos de sua vida: a morte de Olívia.
Olívia é a mulher idealizada desse romance, detentora de uma sabedoria inigualável e a quem Eugênio sempre recorria em busca de conselhos pessoais. Eles haviam se conhecido na faculdade (Olívia era a única mulher a se formar médica) e se tornaram amantes, mas acabaram se separaram devido às viagens da mulher, período no qual Eugênio conhece Eunice e se casa. Olívia, no entanto, volta da viagem alguns anos depois com Anamaria, filha sua e de Eugênio. Pouco tempo depois, ela falece por complicações de saúde, e é nesse ponto que o livro se inicia.
A partir de então (segunda metade do livro), o protagonista decide mudar os rumos da sua vida, sempre se inspirando nos conselhos da falecida amada, que havia lhe deixado cartas que escrevera durante a viagem. Essas cartas, com certeza os trechos mais belos do livro, estão repletas de conselhos muito sábios e que guiam os comportamentos de Eugênio, voltando-os para um caráter menos egoísta e mais humanitário. Para embasar seus pensamentos, Olívia sempre usa exemplos bíblicos, tal como o Sermão da Montanha, em que Jesus prega que nada adianta se preocupar com as coisas superficiais e passageiras da vida, tal como o sucesso e a riqueza: basta olhar os lírios do campo, que nunca se preocuparam com nada disso e mesmo assim sua glória é maior e mais bela que de qualquer um.
É a partir desses pensamentos que Eugênio reconstrói sua vida ao lado de sua filha, obtendo sustento de seu trabalho incessante no seu consultório popular, onde atende os casos mais absurdos da população mais miserável. Seu comportamento como profissional médico também muda muito com essa nova forma de ver a vida: agora ele vê humanidade em cada um dos pacientes e sempre busca atendê-los com boa vontade- como humanos, e não como coisas.
Essa mudança de vida não significa que os sofrimentos do protagonista tenham acabado. Muito pelo contrário, um dos piores episódios acontece nessa segunda metade do livro: Dora, filha moça de Filipe e apaixonada por Simão, acaba engravidando do namorado. A menina vai com o judeu ao consultório de Eugênio, que se recusa a realizar o aborto, mas não consegue impedir que o casal recorra a outros meios para realizar o procedimento. Por fim, Dora acaba falecendo nas mãos de uma parteira, e há uma grande discussão moral no livro a respeito desse caso: Eugênio se culpa por não ter impedido o casal, mas também culpa Filipe pela criação fria e sem carinho que dera à sua filha, visto que ele sempre colocou seu trabalho (Megatério) a frente na sua vida.
Essas e outras questões são abordadas de maneira incrivelmente envolvente na narrativa, o que torna esse romance o tipo de livro que qualquer um teria prazer em ler, visto que a linguagem de Érico Veríssimo é muito clara e popular, e o autor se utiliza de recursos dramáticos para tornar o texto cativante. Mesmo assim, a narrativa não exagera no sentimentalismo, além de levar todos os seus leitores a realizarem diversos questionamentos sobre seu próprio estilo de vida: estamos vivendo tal como Eugênio vivia? Visando apenas o nosso sucesso pessoal? Ou somos mais como Olívia, buscando sempre o bem ao próximo?
É importante notar também que, embora o protagonista tenha chegado a uma certa maturidade moral no final da narrativa, várias questões são deixadas em aberto no desfecho, incluindo os dilemas religiosos de Eugênio (que aderiu ao ateísmo quando mais jovem, mas voltou a acreditar na divindade graças às cartas de Olívia, mas ainda questiona com frequência a Sua existência) e a procura de Ernesto, seu irmão mais novo e dependente químico que havia saído de casa quando jovem.