spoiler visualizarAle245 24/10/2020
"Olha as estrelas e tem coragem"
Esse livro mostra a história de um personagem complexado, tão ambicioso que se casa por interesse, trata mal a família e desiste do verdadeiro amor. Durante os três anos de casamento com Eunice, Eugênio nunca se sente confortável vivendo naquele ambiente abastado. Acélio Castanho critica a arte proletária e a literatura moderna, Filipe Lobo é obcecado por sua mega construção predial, defensor do nazismo e contra judeus - a ponto de perder a própria filha por causa de um aborto. No meio dessa podridão, há personagens mais humanos, como Olívia, doutor Seixas e o casal Franz.
As falas de Olívia são reconfortantes e sensatas, embora com fundo religioso e pacifista. Quando ela retorna de Nova Itália, Eugênio cria coragem e procura a amada, descobrindo ter uma filhinha, Anamaria. Olívia falece 15 dias depois e Eugênio precisa decidir se abandonará a filha ou romperá o casamento com Eunice.
Há uma série de cartas deixadas por Olívia, que demonstra confiar na evolução de Eugênio. Ele, por sua vez, nos surpreende, se transformando radicalmente. Perde sua repulsa pela pobreza e passa a ter ideais humanistas com uma inclinação filantrópica, revelada no final do livro.
Embora eu esperasse uma crítica mais radical e revolucionária, a obra é excelente. Érico Veríssimo demonstra uma grande erudição, tratando de história (Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Fascismo e Nazismo, Revolução de 30...), música clássica, literatos internacionais, psicanálise e descrição de sonhos, medicina, etc. A escrita é fantástica.
Recomendo muito a leitura, que nos mostra que enquanto as estrelas estiverem lá, haverá esperança. "A vida começa todos os dias".
Deixo aqui alguns trechos:
P 275
"Para ele aquilo valia como um descobrimento da vida. Os seus horizontes humanos alargavam-se. Às vezes, diante de uma alma, de uma vida, de uma simples criatura de aparência prosaica e pouco sugestiva, detinha-se ele, um pouco temeroso, como o mergulhador que antes de armar o salto para o mergulho se pergunta a si mesmo que grandes profundidades se esconderão debaixo da superfície aparentemente inocente do lago, que grandes segredos dormiriam no fundo daquela alma."
P 304
"A Olívia tinha razão... Felicidade é a certeza de que a nossa vida não se está passando inutilmente. São estes intervalos entre um trabalho cansativo e outro trabalho cansativo, estes intervalos em que a gente pode conversar com um amigo, brincar com os filhos, ler um bom livro... O erro é pensar que o conforto permanente, e bem-estar que nunca acaba e o gozo de todas as horas são a verdadeira felicidade. Como é que eu podia aproveitar bem uma hora de conversa e brinquedo com Anamaria se antes não tivesse passado muitas horas aqui, curando as mazelas dos outros e pensando nas minhas próprias mazelas?"
P 311
"- Aonde vamos? - indagou Eugênio.
- Vamos andar sem rumo - murmurou Seixas. E depois duma curta pausa: -
Aliás eu não fiz outra coisa desde que nasci."
P 320
"Se naquele instante - refletiu Eugênio - caísse na terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que, num dia tão maravilhosamente belo e macio, de Sol tão dourado, os homens, na sua maioria, estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles: «Homem, porque trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de Sol?» - ouviria esta resposta singular: «Para ganhar a vida». E no entanto a vida ali estava a oferecer-se toda numa gratuitidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se no Mundo e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição transformava-os em inimigos. E havia muitos séculos tinham crucificado um profeta que se esforçara por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos."