MAURO FIGUEIREDO 28/06/2016
Uma narrativa não-linear
Escolhi abrir esta série de resenhas com o romance OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, de Érico Veríssimo. Muitos podem considerar que o livro em questão está longe de representar o melhor da obra desse que é, com certeza, um dos maiores autores brasileiros. No entanto, vale lembrar que um romance pode ser marcante por uma série de aspectos, alguns dos quais guardam pouca ou nenhuma relação entre si. Ademais, as qualidades de um romance que chamam a atenção de um determinado leitor podem passar completamente despercebidas por outro. Não tenho a pretensão de traçar, nas linhas que seguem, um quadro analítico exaustivo de OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, mas, almejo, apenas, esmiuçar algumas características do romance que marcaram a minha lembrança.
Quando li o romance pela primeira vez, eu deveria ter apenas catorze anos de idade, mas lembro-me de que um dos elementos que mais me surpreenderam foi o fato de a narrativa não se processar de forma linear. Eu estava acostumado com o esquema tradicional e linear, com início, meio e fim, com os primeiros capítulos apresentando a ambientação, a descrição do lugar e a época em que ocorrem os eventos, e as primeiras pinceladas da caracterização dos personagens principais, que vão crescendo e ganhando forma no decorrer da narrativa. Lembro-me que, à época, eu havia acabado de ler O GUARANI, de José de Alencar, que segue um esquema narrativo bastante linear e tradicional. Em OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, a narrativa, em terceira pessoa, com o chamado narrador onisciente, tem início com um diálogo em um hospital, onde uma paciente agoniza. Eugênio Fontes, que se encontra a léguas e léguas de distância, recebe a notícia por uma chamada interurbana. A partir desse ponto, acompanhamos o protagonista que, ao longo do trajeto da chácara do seu sogro, onde se hospedava, até o hospital, mergulha em uma série de reminiscências, flash-backs, que conduzem o leitor aos primórdios da sua infância pobre e sofrida, até a sua formatura na faculdade de medicina, seu primeiro encontro amoroso com Olívia, e seu casamento com Eunice.
Após cada flash-back, a narrativa volta ao ponto original, com Eugênio no carro que o conduz ao hospital, onde sua amiga e amante agoniza. A maestria do autor se revela nessas idas e vindas que desafiam a linearidade. Tal recurso, quando bem manejado, permite ao leitor comparar e contrastar dois momentos distintos da vida de um personagem, sem se perder nos meandros da história. Ao chegar ao hospital, Eugênio recebe a notícia de que Olívia, o grande e verdadeiro amor de sua vida, e a mãe de sua filha, falecera poucas horas antes. A partir desse ponto, a narrativa assume um desenrolar mais linear.
Poucos foram os autores que li que sabem manejar tão bem o recurso narrativo do flash-back. Érico Veríssimo realmente me surpreendeu, e me surpreende até hoje, no modo como usa esse recurso narrativo para ir revelando, aos poucos, as verdades ocultas do personagem, problematizando cada vez mais as questões que se apresentam.
Um outro aspecto da obra que me marcou bastante diz respeito ao próprio drama que afeta a vida do personagem principal. Eugênio Fontes se encontra em uma bifurcação do seu destino: de um lado, a vida simples e repleta de amor e paz junto a Olívia, sua colega de faculdade e profissão; de outro, um mundo novo, até então desconhecido, pleno de conforto e conquistas materiais, de onde acena a jovem e voluntariosa Eunice, dona de uma posição social muitos e muitos degraus acima da sua. Eugênio encontra-se nessa bifurcação como o narrador do poema THE ROAD NOT TAKEN, de Robert Frost. Ele faz sua escolha. Porém, vários anos mais tarde, seus flash-backs o levam a refazer a trajetória das cinzas, pois um caminho tomado em detrimento do outro é como a água que desce uma cachoeira: não tem volta.
Érico Veríssimo, como um deus, sacrifica seu filho, Eugênio Fontes, para mostrar ao leitor aonde a indecisão e a covardia podem levar um homem. OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO é um romance de formação, no qual o personagem principal passa, ao longo de sua trajetória, por experiências que culminam no seu amadurecimento e redenção. Posso afirmar que o drama vivido por Eugênio me marcou de forma muito profunda, chegando, mesmo, a contribuir para decisões que mais tarde eu vim a tomar na minha vida adulta. É, também, por isso que a literatura é tão importante: não apenas proporciona entretenimento e fruição estética, mas pode, mesmo, transformar vidas, fictícias e reais.
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