souraquel 12/03/2024
Salomão no auge de sua glória não se vestiu como um deles...
"Olhai os Lírios do Campo", romance de autoria do escritor brasileiro Erico Veríssimo, apresenta-nos a história de Eugênio Fontes, rapaz de origem humilde e temperamento melancólico que ambiciona ser médico. Com o espírito estremecido frente à dureza da vida e sem saber ressignificar seu sofrimento, Eugênio torna-se pouco a pouco uma pessoa amarga, materialista, autocentrada, até que acaba por envergonhar-se de sua família e daqueles que mais o amam. Seu caminho de redenção começa quando, tomado pela dor da perda, Eugênio é convocado a lembrar-se da finitude da vida e das pessoas, a redescobrir-lhes a humanidade, devolver-lhes a dignidade. Munido de tal consciência, ele está pronto, então, para "segurar a vida pelos ombros e estreitá-la contra o peito, beijá-la na face", amá-la com tudo o que ela tem de belo e bom, apesar do lado repulsivo. Sua mudança de comportamento traduz-se através do seguinte trecho:
"Começava a tomar a vida pelos ombros e tentava beijá-la na face [?]. Era um beijo de sacrifício, que ele dava ainda com alguma repugnância, num desfalecimento de medo, violentando a sua natureza mais íntima. Mas havia nesse beijo um estranho elemento de fascínio. E ele sabia?se sabia!?que um dia, não muito remoto, ele ainda beijaria com amor essa mesma vida incoerente, sórdida, brutal e, apesar disso, ou talvez por isso mesmo, bela."
Creio que se eu tivesse de definir em uma frase sobre o que se trata "Olhai os Lírios do Campo", diria que é a história de um homem que descobre entre a simplicidade dos lírios e a beleza das estrelas o caminho para voltar a ser humano. Este é definitivamente um livro cativante, que permanecerá comigo por muito tempo, embora eu deva confessar ter tido resistência para prosseguir com a leitura no início, devido à crueza com que certos assuntos são tratados. Aqueles que, como eu, são mais sensíveis, talvez saberão a que sensação eu me refiro. De toda maneira, acredito que numa segunda tentativa, por saber o que me espera, conseguirei fruir mais do texto!
Agora, abaixo, alguns dos meus trechos favoritos:
"Quando se comovia ouvindo um trecho de boa música ou lendo uma história de abnegação; de bondade, ele reconciliava-se com a vida e inclinava-se a aceitar ou, pelo menos, a procurar Deus. Nas noites de tempestade, quando lhe voltava a velha aflição, com a cabeça tonta de sono e daquele inexplicável pavor - Eugênio entregava-se a Deus. Mal raiava o dia, mal revia o Sol e sentia a volta da calma, Eugênio ria dos pavores da noite. Mas a idéia de Deus ainda estava dentro dele, como uma melodia longínqua."
"[?] do mais profundo do ser às vezes brotava-lhe uma misteriosa luz que, no fugitivo instante em que brilhava, lhe mostrava a outra face das coisas. Ele então compreendia num relance a enormidade do seu orgulho, o absurdo da sua vaidade, a fealdade do seu egoísmo. Um homem superior, ele? Como? Por quê? Que fizera de extraordinário? Tinha na cabeça meia dúzia de noções ainda confusas. Lera aferventadamente meia dúzia de livros famosos... Que era isso comparado com a luta silenciosa dos pais? Que era isso diante dos verdadeiros grandes homens da Humanidade? Ele devia ser humilde, compassivo, tolerante... Assim, rápida como surgira, a luz misteriosa se apagava e Eugênio sentia de novo a realidade, na carne, nos ossos, no sangue."
"?Vocês ateus, querem tirar-nos Deus para nos dar em lugar d'Ele... o quê... o quê? É o mesmo que tirar pão da boca de quem tem fome e dar-lhe em troca um punhado de cinza ou de areia.?"
"?Olha as estrelas. Sempre há esperança na vida.? Ela sempre lhe dizia estas palavras. Tinham um misterioso sentido. As estrelas eram um símbolo de pureza, qualquer coisa intangível que a mão dos homens ainda não conseguira poluir. As criaturas que chafurdavam na lama podiam salvar-se se ainda tivessem olhos para ver as estrelas."
"É impossível?pensa ele?que tudo acabe na morte. Seria demasiadamente cruel que Deus nos desse uma capacidade de criar e sentir a beleza e nos destinasse ao mesmo tempo ao desaparecimento total, e, pior do que isso, ao apodrecimento irremediável."
"?A bondade não deve ser uma virtude passiva. No dia em que eu achei Deus, encontrei a paz para mim e ao mesmo tempo percebi que de certa maneira não haveria paz para mim. Descobri que a paz interior só se conquista com o sacrifício da paz exterior. Era preciso fazer alguma coisa pelos outros. O Mundo está cheio de sofrimento, de gritos de socorro. Que tinha eu feito até então para diminuir esse sofrimento, para atender a esses apelos? Eu via em meu redor pessoas aflitas que, para se salvarem, esperavam apenas a mão que as apoiasse, nada mais que isso. E Deus dera-me duas mãos.?"