Marc 01/04/2021
A trilogia de Hermann Broch trata das mudanças ocorridas no fim do século XIX e começo do XX. No primeiro volume, essas mudanças estavam quase no início, embora já impactassem a vida das classes mais abastadas (comumente descritas como avessas às mudanças por boa parte da sociologia). Curiosamente, aquela herança de honra do mundo aristocrático era descartada em nome de promessas de novos prazeres e poucas obrigações, isso numa classe que tinha esses valores como seu sustentáculo. O segundo volume trata da classe baixa, com as perenes dificuldades de sobrevivência e a esperança de dias melhores. Como essas mudanças radicais poderiam ter afetado as classes mais frágeis?
O que é mal compreendido é que as mudanças não são boas ou ruins por si. Parece óbvio dizer isso, mas é o que elas provocam que pode ser fatal. Quem defende o progresso alucinado, sempre em direção ao futuro, não sabe que certas mudanças são catastróficas. Por outro lado, dizer que todas as mudanças são ruins é sem sentido. A dinâmica da vida é de mudança, isso não há como negar. Mas o que elas trazem em relação ao comportamento humano é o mais importante. Mudanças que sejam amparadas na trajetória humana, que incorporem o que há de bom, testado por milênios de “evolução”, essas devem ser as que buscamos. Aquelas meramente destrutivas, que colocam “novidades” descartadas há tanto tempo, só porque os que as propõem não estudam história, essas costumam ser deletérias e gerar morte e sofrimento.
Disso resulta que períodos em que, como disse no comentário à primeira parte da trilogia, a moralidade foi destruída, costumam ser os mais dramáticos para a humanidade. Esse verdadeiro fetiche pelo recomeço (veja só como essa palavra é atual e como Broch nos permite pensar sobre isso) traz em seu bojo a vontade de jogar uma pá sobre os erros do passado. A palavra fetiche não aparece por acaso. Trata-se mesmo de fetiche, porque ninguém, com ao menos uma parte de contato com a realidade, acredita que isso seja realizável. Não há recomeços na sociedade e na história. Nesses momentos de progresso e deslumbramento da sociedade consigo mesma, que produzem hiatos na moralidade logo em seguida, há descolamento do passado, uma vontade terrível de negar as atrocidades de há pouco; mas não existem lenitivos, é preciso um pouco de humildade (muita na verdade) para reconhecer os erros e partir em outras direções, mas sempre com a lembrança de que eles podem voltar a acontecer. A verdade é que nosso passado, aceitemos ou não, está sempre dialogando com nossas decisões presentes. Nós podemos negar, sempre sonhando com recomeços, com uma utópica pureza que nos permitirá deixar o passado soterrado e esquecido; ou podemos trazer na consciência o peso dos erros, não como um entrave para o dia de hoje, mas como aprendizado.
Todos os caminhos, vontades, obrigações, dívidas — o que quer que seja —, que cercam Esch não tem, na realidade, muita força ou apelo sobre ele, não conseguem fazer com que ele abandone todas as outras possibilidades e se concentre em apenas uma delas. Por inúmeras vezes ele acreditava estar salvando Ilona de um destino trágico e humilhante, acredita estar lutando pela liberdade de Geyring, mesmo entregando alguma forma de amor a Frau Hentjen; no entanto, todos esses caminhos surgem como ímpetos momentâneos e que logo são substituídos por outros. Não que eles não tenham o poder de martelar em sua cabeça, eles tem, estão sempre presentes e por muitas vezes o atormentam “cobrando” soluções, mas parece que ele mesmo não os leva muito a sério. Mesmo as tais famosas marteladas, que seriam capazes de forjar um novo homem nessa aurora de século, pareciam fracas demais, ou talvez fosse a matéria sobre a qual agiam, incapaz de manter alguma forma por muito tempo. O fato é que a mobilidade — arriscaria dizer liquidez, mas o termo é carregado de um significado que acho que Broch não aprovaria, apesar de tudo —, a inconsistência de Esch salta aos olhos. A humanidade que se formava, ali, seria frágil e inconstante, dedicada a alimentar ilusões de grandes realizações, mas incapaz de manter projetos além daqueles que se realizam instantaneamente.
O que Esch parece ter como método de vida é a capacidade de pular de um objetivo para o outro rapidamente, livrando-se do ônus de ter que enfrentar sua concretização. Melhor dizendo, ele não consegue conceber que se permaneça em uma direção por muito tempo. A anarquia, nesse caso, é a completa falta de direção, uma fluidez que não consegue gerar frutos, atos práticos, concretude. De modo que não deve ser acaso o status que os pensamentos do personagem ganham. A cada momento, mesmo curto, ele pensa milhares de coisas, conjectura, se perde em raciocínios longuíssimos e perde o tempo da ação, ou toma decisões erradas. O compromisso, diferentemente de Pasenow, que não desejava assumir responsabilidades, até lhe aparece como importante, mas ele não consegue dedicar mais do que alguns minutos a ele de cada vez, pulando para outro assunto rapidamente. Esch está sempre excitado pelas circunstâncias e procura responder a todos os estímulos, mas, exatamente como nós, falha miseravelmente, porque todas as coisas tem o mesmo peso.
Esch não pode ser considerado uma pessoa má. Ele tenta agir corretamente, mas perdeu, de modo irremediável, a capacidade de tecer ordenamento no mundo. Tudo está embaralhado, democraticamente embaralhado, se poderia dizer, porque tudo tem o mesmo significado. Se é assim, um caso amoroso não pode ser considerado inferior a um relacionamento sério, com possibilidade de constituição de uma família. E vemos como o escopo do primeiro livro é ampliado, porque Pasenow desejava apenas se entregar a seus prazeres, sem obrigações; Esch até deseja enfrentá-las, mas está paralisado por não saber estabelecer prioridades e nem compreender, com profundidade, o significado moral de seu comportamento. É como se tudo se passasse na superfície, como se a vida fosse lidar com as coisas da maneira como se apresentam e nada mais; sem reflexões a longo prazo. Poderíamos dizer que a esse personagem, a nós, falta imaginação moral. E essa afirmação talvez possa criar alguma estranheza, já que ele se perde em imaginar quadros e mais quadros do que poderia acontecer, só que todas as vezes que faz isso, está tomado por expectativas, sem levar muito em consideração a subjetividade dos outros personagens, tampouco as circunstâncias reais do entorno. Em uma palavra, Esch sonha em ser moral, em restituir o certo no mundo, mas como fazer isso se não há objetividade , ou seja, se tudo está tão misturado e nivelado que mesmo os atos mais tolos e banais podem lhe soar como grandes realizações?
Por essa razão, quando tentamos trazer as reflexões do livro para nossos dias, há um desconforto muito grande. Num primeiro momento, através da figura de Pasenow, vemos que a responsabilidade nos afugenta, que a vida para nós é um acúmulo de experiências prazerosas e qualquer coisa relacionada a servir ao mundo é tida como uma espécie de castigo ou desperdício de tempo. Mas com Esch, um personagem que tenta viver de acordo com a moral, podemos começar a nos desesperar, porque se perdemos o princípio de ordenação e hierarquia de valores, é óbvio que podemos dedicar anos a qualquer tolice e descartar as coisas verdadeiramente importantes rapidamente. Isso sem mencionar a inconstância que permeia qualquer tema em nossa vida. O prazer, importante lembrar, sempre como a verdadeira régua para se medir a vida. Nesse segundo volume da trilogia, Broch torna sua descrição do mundo mais claustrofóbica, me parece, porque o desejo pela liberdade se torna uma nova prisão. É simples: a procura incessante por estímulos e liberdade faz com que Esch não consiga mais sentir o gosto da vida cotidiana (sempre o sonho da viagem aos EUA). Não seria mais inteligente construir sua vida onde vivia, não renunciar indefinidamente em nome de um paraíso terrestre, que lhe consome todas as forças e torna a vida pálida e sem gosto?
Qual é, portanto, a grande tragédia de Esch? Ele luta para encontrar algum sentido em sua vida, mas tudo está confuso demais para que ele seja capaz de encontrar a resposta. Porque para que essa pergunta — incontornável para todos os seres humanos — possa ser respondida, é inevitável que exista uma hierarquia de valores. Para que algo dê sentido a nossa vida, outras coisas precisam ser indiferentes e outras despertar ojeriza. Se tudo está no mesmo degrau, se tudo é possível, nada mais óbvio que iremos pular de um sentido a outro imaginando que, de alguma forma que não sabemos qual seja, a resposta virá. Por isso, mencionei de passagem que se referir a nossa época como líquida é superficial e certamente Broch não concordaria: porque esse ainda é o efeito apenas visível, sendo o lado mais “simpático” de uma questão muito importante. Ou seja, essa inconstância, essa velocidade com que abandonamos as pessoas e causas, isso tudo é apenas o sintoma do verdadeiro mal.
Falar em sentido da vida pode parecer até exagerado, mas não creio que Broch não pensasse nessa questão. Precisamos lembrar que é um começo de século depois de enormes mudanças na cultura ocidental. O século XIX assistiu a um colonialismo selvagem, que resultou em animosidade entre as principais nações europeias; assim como diversos pensadores decretaram o fim dos valores absolutos (a morte de Deus, para falar como Nietzsche) e, também, o crescimento do âmbito de influência do comunismo. Tudo isso concorria para abrir uma enorme fenda na cultura ocidental, solapando a base de seus valores, que ainda se mantém, embora transformada. Não muito tempo depois, a Europa entrava num conflito tão agressivo que moldou a visão de mundo de várias gerações. Só para dar um exemplo, foi a gravidade desse conflito que fez com que se ensaiasse a criação de um órgão supranacional de resolução de conflitos entre países e, relativo ao mundo das ideias, surgiu o importante texto “A conspiração aberta” de H. G. Wells, que estabeleceu as bases para um governo mundial, que está se concretizando aceleradamente em nossos dias.
Mas quando falamos de sentido da vida, não se trata apenas desse nível macroscópico, também cada um de nós sente essa questão na pele. O sentido da vida é um tema que todos temos que lidar, conscientemente ou não. E parece que Esch, fruto de todas as transformações culturais que estavam acontecendo, não consegue estabelecer as prioridades de sua vida. A rigor, por mais óbvio que seja dizer isso, Esch é apenas um exemplo, um estudo de caso para o que acontecia em grande quantidade e afetava milhões de pessoas. Não é a velocidade elevada a um valor comportamental, como aparece em alguns pensadores, que explica o momento, ao contrário, ela é consequência de uma profunda transformação cultural. Broch é sutil, mas essas transformações vão aparecendo ao longo do texto. Porque é difícil imaginar que uma sociedade amparada nos valores antigos fosse capaz de tolerar toda a miríade de personagens que Esch vai encontrando pelo caminho. E a transformação em relação ao primeiro livro, quando nos propomos a comparar o tipo de personagens em cada um, fica visível. No caso de Pasenow, o sujeito que desejava as glórias sem responsabilidade, mesmo a vida sem raízes de Bertrand, ainda há resquícios do passado, que desmorona irreversivelmente; já para Esch o passado não tem mais peso algum, ele é voltado ao futuro, a realizações, a sonhos. É o novo mundo querendo se impor, cheio de sonhos e com um quadro bastante diverso de valores. Mas, como não há essa ancoragem no passado, não deixa de ser apenas um recomeço fútil e tolo, fadado ao fracasso (que significa sempre um recomeço atrás do outro, negando os erros e o aprendizado que eles trariam). Exagerando essa tendência, poderíamos afirmar que a sociedade moderna é uma sociedade sem história, pois a cada tropeço ela está pronta para partir em nova direção, se livrando de seus pecados pelo esquecimento.
Esch sabe que os valores devem ser preservados, que a honra, a honestidade, a verdade, etc, devem ainda conduzir a conduta humana, mas não sabe como devem se manifestar num período de crise. Qual a maneira correta de auxiliar um inocente? Qual a maneira correta de entregar amor a uma mulher solitária e que teme as repercussões de ter um relacionamento tornado público pois é viúva? A rigor, Esch não está errado, mas ele perdeu esses parâmetros. E, ao perdê-los, como dito antes, tudo se equaliza e a confusão toma conta de seu espírito. Embora comedido, Hermann Broch é muito feliz em descrever o sofrimento espiritual de Esch. O conflito entre o que ele sabe ser verdadeiro e a impossibilidade de colocar em prática esses valores, de realizá-los concretamente. No fim, como era de se esperar, vencer o relativismo, porque nessas horas apenas os mais perseverantes saberão o que fazer e não serão dominados pelos novos ares.
Eis a maneira como todos nós, mesmo sabendo do valor e significado da verdade, cedemos e nos tornamos apenas mais um exemplo de tolos, entregues ao sabor dos ventos, sem firmeza alguma para tomar qualquer direção na vida. E isso inclui o sexo, que muitos afirmam ser o grande motor do comportamento de Esch. Mas não considero importante destacar esse aspecto, porque ele está incluído naquilo que é uma vida sem parâmetros, anárquica e onde todas as áreas tem o mesmo peso. Se é assim, parece óbvio que ele se entregaria a uma vida de prazeres sexuais, mesmo que eles pudessem contradizer alguns dos valores que tenta seguir, afinal, tudo está no mesmo nível de importância, sendo impossível dizer que Esch se guia por algum valor específico. Os valores vão ficando ocos e incapazes de influenciar a conduta das pessoas. Ao menos os valores antigos, que sobrevivem muito mal.
A moralidade fica confusa, os valores se mesclam e o novo bagunça aquilo que existia antes. Isso já havia aparecido em Pasenow, mas agora, com Esch, vemos que há um deslocamento feito quase sem perceber dos valores para a necessidade da ação. Não importa muito aquilo que se está fazendo — até porque nem mesmo Esch seria capaz de esclarecer seu comportamento, o que o motiva —, desde que não se esteja parado. A ênfase muda do valor orientando a ação, para o mero procedimento, ou seja, é fundamental fazer alguma coisa, o que seja e os motivos, isso realmente não importa. Não estamos falando de velocidade e movimentação, mas da ideia de que o mundo precisa sempre de nossa intervenção. Essa distinção é importante, pois dizer que a ação vai assumindo o papel de destaque pode fazer pensar na tese de Bauman sobre a modernidade líquida e a necessidade de movimento. Não se trata disso, embora Esch se desloque bastante durante o livro, viaje, caminhe pela cidade, ele não é um turista (o ideal da modernidade é o turista, pois viaja, não estabelece laços e precisa conhecer tudo, segundo Bauman), mas alguém que precisa dar uma resposta ao mundo, tentar modificá-lo constantemente, corrigi-lo. Se Pasenow pouco se importa com o mundo, Esch, ao contrário, tenta transformá-lo o tempo todo. Mas ele não sabe como, não sabe nem mesmo o motivo e não tem muita noção das modificações que deseja impor. Isso fica patente quando ele se mostra pouco empolgado com as reuniões do sindicato, mas logo entende que precisa fazer algo por Ilona e por Geyring. Agir, mesmo que não se tenha clareza das razões que o levam a isso.
Esch está o tempo excitado, não apenas no sentido sexual. Ele sente a necessidade de agir, sente que, se ficar parado, nada vai acontecer. Na sua visão, mesmo que cada pessoa tenha sua vida, bastaria ele parar (nem que fosse para pensar), o mundo todo ficaria parado. É essa tendência moderna de supor que o mundo precisa estar em movimento, de que “águas paradas se tornam lodo” e que quanto mais rapidamente as soluções vierem, melhor, será um problema à menos. Não espanta que a ansiedade seja um dos grandes males de nosso tempo, porque estava em gestação há cerca de um século... Usei a palavra excitação, mas o mais correto seria dizer que Esch é suscetível, porque tudo que lhe passa pelos olhos provoca algum pensamento, algum tipo de reação; ele é compelido a reagir, mesmo que dure muito pouco e não tenha consequência alguma. Essa característica o coloca na grande confusão de sua vida, que mescla uma moralidade elevada, de cunho religioso até, e o impulso sexual, que o faz desejar muitas mulheres ao mesmo tempo. Enfim, Esch é uma completa anarquia de impulsos, caos, lhe jogando para todos os lados.
Assim, para concluir, gostaria de comentar rapidamente sobre os dois significados da palavra anarquia. Eu brinquei com eles durante o texto e é preciso esclarecer um ponto. A princípio, o termo faz pensar em caos. Mas há o sentido político, onde uma sociedade idealizada não possui autoridade, não possui Estado e hierarquia. Esch vive o caos, um verdadeiro furacão de desejos e deveres, contradições que o levam a querer soluções imediatas para todos os problemas. Mas esse caos só se torna efetivo por não existir hierarquia de valores dentro dele. Se tudo foi nivelado, como já disse antes, nada é prioritário e pode ser abandonado tão logo gere desconforto ou problemas. E ele não tem meios de estabelecer prioridades, pois tudo tem exatamente o mesmo peso. Mas a anarquia que se estabelece vai muito além da que Esch enfrenta internamente. É a cultura que vive esse momento, onde o novo e o antigo estão em conflito e o mundo que vai nascer ainda não esboçou suas feições. Não é de estranhar que logo à frente, no terceiro volume, haja guerra, pois é a consequência lógica e esperada de tudo que estava acontecendo até então. O que precisamos reter, por enquanto, é que Esch é uma força que entende ordem como igualdade, ou seja, de um modo bem diferente do que usei aqui. Para ele, o mundo só está ordenado quando todos gozam das mesmas oportunidades e tem as mesmas condições de vida. Essa sutileza aparece em sua revolta (tardia), contra todas as figuras que estão acima dele, seja de fato, como seus chefes ou proprietários de empresas (ou mesmo a polícia, que ele se refere como corrupta e defensora da desigualdade) ou imaginariamente, como seu “amigo” Lohberg, moralmente superior e que ele despreza — inveja, seria mais correto dizer —, mas de quem se apropria de algumas expressões e ideias para a formulação de sua visão de mundo e plano de ação.
Tudo isso, essa retórica religiosa e socialista, concorrendo dentro dele com impulsos lascivos, faz com que Esch contribua — inconscientemente — com a ruína do mundo e a desagregação dos valores. Talvez esse seja o traço mais importante em toda a trilogia e que só aparece mais claramente a partir desse volume. Sem perceber, tentando acertar, mas sempre errando porque a personalidade não tem parâmetros para avaliar a realidade e estabelecer o rumo correto de ação, Esch vai se embrenhando cada vez mais nessa destruição. É difícil ter clareza quando não há pontos fixos, seria quase um milagre que ele soubesse como se comportar.