Eric Vinicius 26/10/2021
Um embuste
"O amor nos tempos do cólera" é uma obra que engana, do início ao fim.
O primeiro passo em falso me veio logo no começo: por ter "Cem anos de solidão" como um dos romances favoritos, aproximei-me do primeiro livro escrito por Gabriel García Márquez após o Nobel de 1982 confiante de que conseguiria tomar um pouco de ar, depois de algumas leituras sufocantes, recentemente, como "O processo" (Franz Kafka), "1984" (George Orwell) e "Ficções" (Jorge Luis Borges). Sem muito tempo disponível e em meio a tantos desafios vividos neste ano, na esteira da (re)leitura de alguns textos divertidos de Saramago e Verissimo, a também já conhecida escrita maravilhosa de Gabo certamente haveria de me ser um doce alento, com uma experiência leve, inspiradora, saborosa, como são muitas histórias de amor.
Mas não demorei a perceber que, ao apresentar a saga de Florentino Ariza e Fermina Daza - iluminada pela história de seus pais -, o expoente colombiano deixa de lado a "magia" que o consagrou para dar vida a um realismo literário puro, duro e indigesto. Não que sua arte seja desfigurada: aqui também estão presentes algumas de suas virtudes mais marcantes, como o uso soberbo de frases de efeito ("Cada qual é dono de sua própria morte, e a única coisa que podemos fazer, chegada a hora, é ajuda-lo a morrer sem medo nem dor"), o ritmo fluido ("Sigamos em linha reta, reta, reta, outra vez até a Dourada") e o humor inesperado, absurdo, irresistível ("... houve um mico amazônico que suscitava certa compaixão porque tinha semblante atribulado do arcebispo Obdulio y Rey, a mesma candura nos olhos e eloquência nas mãos, mas não foi por isso que Fermina Daza se desfez dele, e sim pelo mau costume que tinha de se comprazer em homenagem às senhoras"). A temática ainda torna oportuno o lirismo exacerbado em alguns trechos, que propositalmente beiram a pieguice, como as hipérboles no namoro epistolar. Contudo, no lugar de filhos nascendo com rabo de porco, mulheres belas ascendendo ao céu e ciganos que profetizam em pergaminhos a história de uma família carregada pelo vento, a obra de 1985 traz um matiz ocre e nauseabundo, assustadoramente verossímil e que se faz presente desde a frase emblemática que inaugura o romance ("Era inevitável: o cheio das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados"). A experiência sinestésica permeia toda a trama, em especial no recorrente odor das valas abertas por onde passam corpos e dejetos humanos, em parte dissipado pelo da pólvora dos canhões que não servem só para matar.
São os efeitos do(a) cólera, palavra empregada ambiguamente, no romance, para se referir tanto à epidemia que se alastrou pela terra natal do autor, no tempo da escrita, como ao perfil das incontáveis guerras civis que se sucederam no país sul-americano, após sua independência, no período que marca a narrativa (entre o fim do séc. XIX e início do séc. XX). Eis, então, a segunda cilada em que caí, a qual serve também para indicar a multiplicidade de assuntos na abordagem e denotar o caráter aberto do livro, típico das grandes obras.
Quanto ao tema central, como o próprio título sugere, "O amor nos tempos do cólera" se revela como uma espécie de ensaio sobre o amor. Na figura do protagonista, projetam-se algumas de suas principais manifestações (ilusórias?): a face platônica, na relação impossível com Fermina Daza (que faz lembrar o universo paralelo que Jay cria - e no qual se aprisiona - para Daisy em "O Grande Gatsby", de Scott Fitzgerald); o lado terno e angustiado, no amparo incondicional da mãe Trânsito Ariza (imaginar as possíveis significações nos nomes insólitos escolhidos para as personagens é uma das várias delícias nas obras de García Márquez); o setor oculto da inveja e do ciúme - de fazerem impressionar até a uma frívola Anna Kariênina -, presente na comodidade inabalável de um casamento estável, próprio das aristocracias, a que a figura principal igualmente se reserva para viver só com sua amada; o prisma da amizade (ou quase isso), na empatia acalentadora de Prudência Pitre e na cumplicidade silenciosa de Leona Cassiani; e também, claro, o viés carnal, no ardor desesperado dos relacionamentos proibidos, vividos luxuriosamente com todas as suas inúmeras mulheres (os rompantes eróticos elegantemente se sobressaem, em meio à narrativa algo monótona do quotidiano de espera infinita de um romântico incorrigível).
É curioso observar esse jogo de opostos feito pelo autor sobre sua principal personagem: à castidade da juventude vivida estoicamente em um quarto de bordel se contrapõe a lascívia irreprimível (nem mesmo pelos limites da moralidade) na meia-idade; a loquacidade das incontáveis cartas perfumadas, escritas como forma de dar vazão aos sentimentos, contrasta com a incapacidade do criador do "Secretário dos Enamorados" em redigir um documento oficial, com a crueza de suas relações e com o próprio aspecto taciturno por que ele passou a ficar conhecido, em todos os meios.
Tudo isso me leva à sensação de que, embora margeie o tema ao longo da obra, Gabriel García Márquez em momento nenhum mergulha no relato de um amor verdadeiro. Não o é a obsessão de Florentino Ariza por Fermina Daza, já que, mais do que por sua musa, o apaixonado é apaixonado, mesmo, por sua própria paixão; decerto, muito menos podem ser caracterizados como tal seus anelos fugazes de volúpia ("não sabia mais dizer se seu costume de fornicar sem esperanças era uma necessidade da consciência ou simples vício do corpo"). Nos tempos do cólera, não há personagens que sejam capazes de amar.
É por essas razões que, já precavido, posso avaliar a epífrase "os sintomas do amor são os mesmos do cólera" como mais um embuste de Gabo. Não senhor, não há espaço para o ódio, onde há o amor. Ele não dói; cura! E se a paixão nos rouba o ar e traz espasmos à altura do ventre, seria uma heresia confundir o egocentrismo de seu sofrimento com um sentimento tão nobre de quem não se deixa perceber a si próprio, por voltar o olhar primordialmente a quem se ama.
Se bem que essa poderia ser, na verdade, uma maneira belíssima de indicar, justamente nas lacunas, a inefabilidade do amor.
Não tem jeito, fui pego mais uma vez: "O amor nos temos do cólera" é, definitivamente, uma obra fantástica dedicada ao amor!