Silvana (@delivroemlivro) 23/07/2018
Uma temporada na montanha
“A montanha mágica” é um romance sobre o tempo. Mais do que um romance sobre o tempo, trata da percepção do tempo. Além de ser um romance sobre o seu tempo.
Tempo, tempo, tempo...
"Três semanas não representavam quase nada ali em cima – todos o haviam prevenido desse fato. Aqui em cima, a menor unidade de tempo era o mês."
Na Suíça, o Sanatório Berghof é um lugar onde se passa a maior parte do dia na posição horizontal, acumulando proteínas e desfrutando do ar frio e seco e de uma bela paisagem alpina. Condições e clima favoráveis para o tratamento de moléstias pulmonares. Nesse isolamento forma-se um microcosmo composto, em sua maioria, por europeus mas que também abriga gente de toda parte: um mundo de amostra, de laboratório. Não há personagens inúteis, meramente cenográficos: todos são alegóricos, representativos seja de uma cultura, um tipo físico, um modo de vida. Exibe-se um leque de tipos humanos das mais variadas espécies.
O personagem principal é um jovem de vinte e poucos anos, um órfão, um engenheiro, um paisano: Hans Castorp, o filho enfermiço da vida! A princípio, apenas um visitante cordial. Depois, ao ser admitido como membro legítimo dessa sociedade, passa a viver lá por bem mais que as três semanas inicialmente pretendidas.
No seu período de adaptação, Hans Castorp começa a perceber as vantagens (inclusive as financeiras) desse isolamento forçado: um salvo-conduto, uma fuga da pouco atraente vida na planície com suas obrigações técnicas, administrativas. Hans é engenheiro por mero acaso, não há nele uma vocação definida. Seus interesses são múltiplos, sua verdadeira vocação é o ócio. Ele é um experimentador, um curioso legítimo.
Aos poucos, começa a entender a lógica social, a hierarquia dos doentes, sua rotina, seus padrões são reconfigurados e ele passa a dedicar-se ao estudo de assuntos diversos como medicina, astronomia, botânica, música... Sua imaginação é ativada e ele transita em seu elemento, no campo das ideias, no reino da contemplação.
Dentre essas atividades pedagógicas, assume o papel de aluno, espectador de personagens que representam dois pilares intelectuais opostos: Settembrini e Naphta. Seus longos e complexos embates acerca de questões políticas e filosóficas – a maioria de difícil compreensão – ocupam grande parte do livro. E aqui se detecta o calcanhar de Aquiles da obra: Thomas Mann faz um uso excessivo desse recurso, lá pelo terceiro, ou quarto encontro desses personagens o leitor percebe o artifício. É um enxerto, tais diálogos são importantes, têm um propósito, mas percebe-se a costura. A despeito disso, o último encontro, a conclusão do atrito entre Settembrini e Naphta é um dos eventos mais surpreendentes da trama.
O mais interessante é que o objeto de disputa, a mente de Hans Castorp, jamais é capturada por nenhum deles. Apesar de Settembrini representar para ele um figura paterna, não toma partido nas discussões. Apenas observa, apreende, estuda: seu interesse são as ideias, é a compreensão. Não age como juiz não lhe cabe eleger um vitorioso, um derrotado. Seu comprometimento é com o autodesenvolvimento.
Já pelo coração de "nosso herói" não há disputa: os dois personagens que o habitam convivem harmoniosamente, cada qual em um hemisfério emocional distinto. Joachim, o primo, representa a família, o amor fraterno, a honra. Clawdia Chauchat habita a esfera sensual, representa o desejo, a carne, o mistério. Através desses vizinhos é que passamos a conhecer a alma, o íntimo, a esfera emocional, instintiva do racional jovem alemão: e o que se dá entre eles terá um efeito transformador, significativo e os momentos mais emocionantes de todo o livro, e, inclusive, uma experiência fantástica, sobrenatural completamente inesperada pelo leitor.
Há um tempo de chegar e há um tempo de partir. A mudança é compulsória e chega até para os que se isolaram do mundo, aos enfermos. A exigência desse retorno é uma guerra declarada. A profecia de Naphta estava correta:
"— Não, senhor! — prosseguiu Naphta. — O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do Eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é... o terror."
De volta à planície, o narrador – até então irônico, divertido, bonachão – em meio a "Crepúsculo, chuva e barro, rubros clarões de fogo no céu turvo que sem cessar estruge atroadoramente; os úmidos ares invadidos e dilacerados por silvos agudos, por uivos raivosos que avançam como o cão dos infernos e terminam a sua órbita, entre estilhaços, jatos de terra, detonações e labaredas, por gemidos e por gritos, por clarinadas estridentes e pelo rufar de tambores, clamando depressa, cada vez mais depressa..." e apesar de declarado pessimismo, deixa o destino de Hans Castorp em aberto e encerra o livro com uma pergunta: "Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?"
Cabe ao leitor a resposta, o destino final do jovem enfermiço da vida. É um desses livros que se apresenta diferente para cada um que o habita, para cada paciente-leitor. É daqueles que, embora terminada a estadia, fica conosco, nós ficamos nele. Fechar na última página é uma verdadeira “partida em falso”. Cada um tem a sua montanha, o tratamento no Sanatório Berghof é individual, pessoal, intransferível. Não há cura, saímos todos filhos enfermiços da literatura.