Luísa Coquemala 19/12/2016
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Já faz tempo que eu ensaio escrever algo sobre A montanha mágica. Minha história e minha relação com o livro me incitam e, ao mesmo tempo, me impedem de escrever sobre ele. O desejo de falar sobre A montanha mágica vem desde a primeira vez em que li a obra, de cabo a rabo e quase sem pausa, em questão de dias. Isso se deu em janeiro de 2014. Desde então, sempre que encontro um tempo nas férias volto ao livro. E é justamente esse o motivo pelo qual também me sinto incapaz. Terminada a quarta leitura do livro e depois de estudar três anos sobre ele e seu autor para escrever minha monografia, vejo o quanto ele é magistral, universal e sublime. Até hoje, li e me contentei com toda a alegria e prazer que sinto, mas só.
Contudo, me formei neste ano e, então, fecho um ciclo em relação ao meu aprendizado pessoal e ao livro. Com a nova edição do livro publicada pela Companhia das Letras e com a atual situação do mundo, a coragem de falar vence o receio de tentar colocar em palavras meu amor pelo que considero o melhor livro de Thomas Mann.
A montanha mágica não é um livro qualquer. Percebi isso quando terminei de lê-lo, em um fim de tarde quente de janeiro, sentada na poltrona da casa da minha avó, completamente absorvida e estarrecida com o final de um livro que eu já havia julgado não poder ficar melhor – sempre me enganando, sempre me surpreendendo de novo e de novo. Terminada a última frase, encarei o livro por alguns segundos e, então, em um gesto espontâneo (e, reconheço, esquisito), o abracei. Fiquei abraçando o livro, com os olhos marejados de lágrimas, pensando na mensagem final que ele passava, na vista proporcionada depois da escalada, no poder, vigor e sabedoria da escrita de Thomas Mann. Foi por isso que decidi escrever minha monografia sobre A montanha mágica: eu queria entender mais daquele mundo, dos longos diálogos, das personagens e da experiência de Hans Castorp. Eu sabia que, ao me debruçar sobre o livro, eu não aprenderia apenas história, filosofia e literatura: eu aprenderia um pouco mais sobre a natureza humana.
O LIVRO
Em poucas palavras, eis o enredo do livro: Hans Castorp é um jovem burguês, cresceu órfão e tem uma vida abastada. Acostumado com ótimas refeições, charutos caros e boas maneiras, Hans cursa engenharia e, recém formado, sobe para o sanatório Berghof visitar o primo, Joachim, cujo estado de saúde não é bom. Em um primeiro momento, Hans Castorp estranha a atmosfera do sanatório, demora a se adaptar ao estilo de vida do local e deseja partir antes das três semanas que planejava passar no local.
Contudo, com o passar dos dias, Hans começa a gostar da vida do Berghof, onde pode ler, descansar e, basicamente, se afastar de uma vida que talvez não seja a ideal: a vida da planície, frenética e corrida. Afinal, Hans não gosta do curso que fez, não se sente entusiasmado com as futuras possibilidades de trabalho. Aparentemente sem intenção alguma, faz a conta: com sua herança e os juros proporcionados por esta, é possível pagar a mensalidade do sanatório, onde se vive muito bem. Há, porém, uma condição: estar doente. Não demora muito, o jovem burguês começa a se sentir mal, com febre. Aceita fazer um exame com Dr. Behrens e o resultado é chocante (porém, em certa medida, acredito que desejado): Hans está doente e vai ter que passar algum tempo no Berghof.
É justamente a experiência de Hans no sanatório que traz a possibilidade do jovem viver momentos difíceis de se encontrar na planície: leituras, estudos sobres os mais variados temas, questionamentos sobre a vida e a morte, discussões filosóficas longas e o conhecimento das mais variadas pessoas e ideias. É importante ressaltar: as pessoas com as quais Hans trava conhecimento não são pessoas quaisquer, são personagens típicas, representantes sobretudo de ideias – as ideias em circulação e debate no mundo burguês do começo do século XX, antes do explodir da Grande Guerra. Assim, Thomas Mann consegue construir um panorama dos vários tipos e pensamentos em conflito no mundo da época. Para isso, utiliza-se da elevação proporcionada pela montanha e por uma mensagem clara: o mundo está doente. Já dizia Krokowski, um dos médicos do sanatório: “Nunca conheci uma pessoa perfeitamente saudável”. Em um mundo de paz aparente, onde ferve uma irritação latente no subterrâneo, o advento da guerra é indicativo do explodir dos conflitos de ideias então em vigor – da mistura de tédio e irritação sinalizada pelo narrador.
Para além disso, há também a questão do tempo, fundamental para se pensar o livro – principalmente em termos de relatividade. Segundo o narrador, quando chegamos em um novo local com uma nova rotina, acontece uma dilatação temporal, o tempo passa “mais devagar”. Quando começamos a nos acostumar com o novo local, o tempo também passa a fluir normalmente. Hans sente essa relatividade na pele e o leitor o acompanha tal sensação: afinal, o primeiro dia de Hans na montanha demora em torno de 110 páginas para terminar, enquanto os outros 7 anos na montanha se passam nas 700 páginas restantes.
Mas a questão da relatividade se mostra igualmente importante para uma outra questão: o deslocamento histórico. O narrador, logo no Propósito do livro, já anuncia: a história fala de um mundo não mais existente, o mundo de antes da Primeira Guerra Mundial. Contudo, para o autor, essa é uma história “mais velha que seus anos” e “recoberta pela pátina do tempo”. Ora, A montanha mágica foi publicado apenas dez anos após o fim da guerra. Seriam 10 anos tanto tempo? Relativamente, sim. A Grande Guerra caracteriza um sulco enorme no mundo e os que sobreviveram à guerra ficam, então, com essa sensação: o mundo que ficou para traz é outro, completamente diferente, não mais passível de existir depois da guerra, depois do conhecimento de nossa capacidade de destruição. Trazer a experiência da relatividade do tempo para a experiência pessoal de Hans é, ao mesmo tempo, dar margem para uma visão histórica do romance. História não mais significa um passado necessariamente distante e afastado no tempo. História também pode ser algo próximo e marcante.
A GRANDE MENSAGEM
Os aspectos dos quais falei acima, acredito, serão cansativamente explorados com o lançamento do livro pela Companhia das Letras. Afinal de contas, são aspectos fascinantes quando se lê a obra e tópicos para discussões sem fim. Portanto, com receio de que alguém se esqueça ou deixe passar, falo do que mais gosto no livro: sua mensagem final, com a qual nos deparamos com surpresa e comoção.
Como anunciado no Propósito do livro, a Grande Guerra explode no final e, com seu advento, acaba com a montanha. Não é mais possível viver em um sanatório internacional, despreocupado com a planície, quando uma guerra começa. Todos precisam descer e lutar uns contra os outros.
A mensagem final tem uma relação com toda a história e, claro, com o eclodir da guerra. Thomas Mann, em 1914, foi um incentivador e apoiador da Primeira Guerra Mundial. Ao final desta, contudo, o autor mostra ter mudado completamente suas ideias – e, de um texto assombroso como Pensamentos na guerra, passamos a uma defesa democrática em Da república.
Com sua posição equivocada, Thomas Mann aprendeu algo e, penso, talvez seja sua intenção, com o final do romance, comunicar ao leitor um pouco do seu próprio aprendizado. Em um subcapítulo intitulado Neve, Hans, após alguns devaneios, chega à conclusão posteriormente esquecida: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos”. E, ouvindo Der Lindenbaum, pensa em morte e amor.
A morte pode ser reverenciada e respeitada, mas ela nunca deve ultrapassar nosso amor pela vida. Finalmente, em meio ao campo de batalha, a música volta à cabeça de Hans. Não sabemos se sairá vivo. E então, o narrador finaliza: “Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da festa universal da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”
Será que um dia, passada a guerra e sua destruição, refletiremos e, criado o sonho de amor, viveremos em paz? Thomas Mann escreve seu livro entre as duas guerras mundiais e, nós, leitores do século XXI, sabemos que, naquele momento, o sonho final do narrador de A montanha mágica ainda não se concretizaria. E, acredito eu, ainda não se concretizou.
Quando vejo notícias sobre a situação na Síria, a vitória de Donald Trump como presidente, o ódio de nosso país entre dois campos polarizados e muitas vezes cegos, penso, com tristeza, que o sonho final de Mann ainda não se realizou. Ainda não se realizou porque deveríamos partir de ideias e de leituras para discutirmos racionalmente – e não de achismos e de verdades aparentes e agressivas; ainda não se realizou porque um povo é morto e massacrado, em última instância, por causa de poder; ainda não se realizou porque há ódio a quem é diferente, há fundamentalismo religioso.
Mesmo assim – e, talvez, justamente por isso – é importante ler A montanha mágica. A estadia e descobertas de Hans são também as nossas descobertas, sua conclusão de que vale mais o amor à morte também é a nossa conclusão e a sensação de que da guerra e do ódio deveriam surgir tempos melhores, também deve ser a nossa. Diante das catástrofes contemporâneas, o livro de Mann traz a esperança e a força para lutar por um mundo melhor, mais justo e pacífico. Thomas Mann se foi, mas sua obra e sua mensagem permanecem, vivas, em nós. Vale a pena perseverar.