Lucas 12/08/2017
Manifesto do Nada que descreve o Tudo
Estupefato. Esse é o adjetivo que melhor descreve o leitor de A Montanha Mágica, seja durante a empreitada (pois ela é, sim) da leitura ou após o seu término, que satisfaz e ao mesmo tempo deixa quem lê triste; não pela história ou narrativa em si, algo impossível, mas sim pela falta que personagens tão queridos farão ao cotidiano de quem se debruçou sobre a obra-prima do alemão Thomas Mann (1875-1955).
A Montanha Mágica narra a trajetória do jovem alemão Hans Castorp. Recém formado, ele parte em uma viagem rumo aos Alpes Suíços para uma "visita de médico" ao seu primo, Joachim Ziemmsen, que lá estava internado em um sanatório para tuberculosos, o Berghof. A tal visita rápida vai se alongando repetida e indefinidamente, como o leitor irá perceber. Se há um enredo narrativo, é apenas este: uma visita sem dia marcado para acabar, em um local cheio de doentes. Mas a hipótese de um romance sem enredo passa longe desse raciocínio; a narrativa parte desse Nada para detalhar o Tudo.
Se o romance se restringisse a apenas isso, já seria de ótimo tamanho e relevância. Mas Thomas Mann faz (muito) mais: em um contexto cercado de males e doenças, porque não discorrer sobre medicina? Em um lugar tão lindo, porque não mencionar a sua flora e o seu clima? E como se está em um ambiente coletivo, com pessoas compartilhando anseios e dores, não seria possível a existência do amor entre duas delas? E já que se está falando de um sanatório, porque não incutir no leitor valores como a bondade, a esperança e o reconforto a quem está sendo vencido pela dor? Ler A Montanha Mágica é, antes de tudo, estar sujeito a um bombardeamento de aprendizagem e reflexão. Cada capítulo, ou praticamente cada página, trás uma ou outra coisa, quando não as duas.
Nesse ponto mais prático, ainda sem se ater às questões filosóficas, sociais e a outras temáticas (cujo espaço nessa resenha está reservado mais adiante), Mann constrói a sua ficção de uma forma ímpar. Antes dos detalhes físicos externos (que são descritos, mas de uma forma secundária) de médicos, pacientes, familiares e outros personagens, o leitor conhece a alma deles. Tampouco interessa se um indivíduo é baixo, alto, russo ou eslavo: o relevante é que o leitor seja capaz de imaginar o seu respectivo sofrimento, a sua origem, as suas dores e o desamparo que as doenças graves causam. Em A Montanha Mágica, a alma não é meramente um conceito abstrato ou secundário: é a identidade que define e difere um elemento narrativo do outro. O autor, por meio de vários personagens, ensina que o interior sempre será mais importante que o exterior.
O romance foi escrito em duas etapas. Mann o iniciou em 1912 e parou de escrevê-lo em 1915. Veio a Grande Guerra e o autor só voltou a trabalhar na obra em 1919, terminando-a apenas em 1924, no ano em que foi lançada. Estes detalhes não servem apenas para "encher linguiça": não se sabe em que ponto da narrativa o autor interrompeu seu trabalho, mas é nítido ao leitor a influência que a Primeira Guerra Mundial e suas resultantes ideologias trazem ao livro, que é carregado de uma imensidade de contemplações da sociedade (especialmente a alemã) naquele pós-guerra. Isso é claramente visível especialmente a partir da metade da obra, quando o autor insere um personagem misterioso que protagoniza dezenas de debates com Lodovico Settembrini, também paciente do sanatório e principal coadjuvante da história.
É Settembrini, aliás, quem inunda as páginas de A Montanha Mágica com as grandes e variadas reflexões que são a marca registrada da obra. Humanista, antibelicista, mas contraditório em várias ocasiões, ele desenvolve com os protagonistas diversas questões filosóficas, que assumem caráter de digressão, em relação à narrativa em si, mas que são capazes de engrandecer a mente de quem está lendo. Estes momentos são tão frequentes que o leitor acaba desistindo de marcá-los ou até mesmo tomar nota deles: todo o livro, do seu princípio ao fim, acaba narrando um processo de evolução moral e intelectual dos personagens e, principalmente, do leitor. E a gama de aspectos que conduzem a essa evolução é tão diversa que torna-se impossível detalha-la em sua plenitude.
A primeira temática que se desenvolve nesse contexto de aprimoramento interior é a do tempo. Em toda análise ou sinopse mais detalhada que se vê d'A Montanha Mágica, há uma associação especial entre essa unidade que mede o curso da vida e a narrativa. Mann não pretende estabelecer uma opinião definitiva, tampouco um conceito objetivo para algo tão subjetivo: sua técnica (neste e em todos os outros temas que vão surgindo) consiste em expor frontalmente duas opiniões, ambas com embasamento e sentido, e desse choque argumentativo, surgem infinitas formas do leitor entender e assimilar a questão. Voltando ao tempo, a história discorre sobre as diferentes percepções que ele possui para um mesmo indivíduo. Porque o tempo passa tão rápido e tão devagar, dependendo da atividade que está sendo desenvolvida no presente? O que faz o tempo, por exemplo, passar tão devagar quando se é criança, onde, num sentido mais prático e "brasileiro", o Natal parece não chegar nunca? Partindo para o próprio sentido da obra, porque o tempo passa em um ritmo muito diferente "lá em cima", no sanatório? O que é melhor, que o tempo passe rápido ou não? Todas essas questões são desenvolvidas com tamanha minúcia argumentativa que o leitor, certamente, terá uma profunda mudança na sua percepção de tempo após a leitura.
O humanismo, a corrente de pensamento que mais aparece na obra, é visto em todos os seus pormenores. É a partir de sua exposição que Mann desenvolve boa parte da carga filosófica que o livro trás. Partindo de uma definição simples para o tema (o homem como centro do mundo), o autor discorre sobre temas de ordem prática e muito atual até hoje, quase um século após o lançamento d'A Montanha Mágica. A pena de morte, os castigos a presidiários, a utilidade ou não da fé, a maçonaria e sua função humana, as enfermidades, cremação x sepultamento tradicional, doutrinas religiosas, a mediunidade... Uma resenha não seria capaz de comportar todas as nuances expostas pela obra. O mais relevante, contudo, é a forma bilateral com que esses temas são desenvolvidos, com várias argumentações diferentes. A pena de morte, por exemplo, é defendida com teses nas quais, possivelmente, quem é a favor jamais havia pensado; o mesmo ocorre com quem não é um entusiasta dessa prática. Estas exposições, na verdade, refletem bem o caráter da narrativa: um relato minucioso de como todas as coisas são, sob diferentes pontos de vista.
Tais complexidades tornam o livro bem exaustivo em vários pontos. Associado a isso, há o tamanho vultuoso de muitos capítulos, especialmente na segunda metade da história. Estas características tornam a leitura engessada em diversas ocasiões, mas o leitor não deve se preocupar. Segundo o próprio autor, em seu prefácio, o tempo deve ser a última preocupação de quem se aventura pelas entranhas de sua narrativa. Certo ou errado, útil ou inútil, as emoções despertadas em A Montanha Mágica farão com que o leitor, no mínimo, reflita sobre questões místicas aparentemente incompreensíveis. E se uma obra tem o poder de gerar a reflexão, deve ser valorizada como tal, já que um dos grandes sentidos da literatura é justamente este: um contínuo processo de conhecimento de si mesmo ou do ambiente em que o indivíduo se insere.
Nesse emaranhado de emoções, o leitor se espelha e, inconscientemente, acompanha a evolução moral de Hans Castorp, que aos poucos vai alterando a sua percepção a respeito da "planície". Todos precisam de um refúgio, um desligamento, mesmo que breve, do cotidiano e sua rotina, ocasião perfeita para reflexões íntimas que engrandecem, sob todos os aspectos. Como o protagonista na narrativa, somos todos enganados pela atmosfera lúdica e de outra realidade que é a vida em Berghof: tudo o que se acredita, em termos de tempo, doenças, religiões e mais uma imensidade de temas sofre enormes mutações, que a atmosfera do sanatório (que só pode ser sentida, e não descrita por quem lê a obra) provoca no íntimo de quem acompanha essa saga. A Montanha Mágica assume assim o viés de uma grande marreta, capaz de quebrar paradigmas e interiorizar abstrações: uma viagem em espiral pelo ato de refletir.