Vitoria.Milliole 29/05/2023
Meu primeiro contato com Dostoiévski e com a literatura russa, no geral, não poderia ser mais doido. Primeiro, me surpreendi com a forma como ele é escrito. Depois, com o caráter do narrador. Por último, me surpreendi quando percebi que todos somos um pouquinho parecidos com ele.
O livro é dividido em duas partes. A primeira é um monólogo do narrador (que eu só percebi depois que nem ao menos sabemos o nome), um homem subterrâneo, que observa e reflete sobre o mundo através do subsolo. Nela, ele apresenta sua visão de mundo existencialista e amargurada. Um homem de quarenta anos com uma doença que se recusa a tratar, porque dois e dois ser quatro segue uma lógica pré estabelecida que joga por terra o livre arbítrio e não se tratar e nem fazer absolutamente nada é reinvindicar esse livre arbítrio, bem como questionar que dois e dois são quatro. E isso também fica claro na passagem:
"Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz."
Mas também fica claro que ele se odeia e se martiriza por ser assim. E é isso o que torna o personagem tão interessante: ele se odeia por fazer coisas que continua fazendo, mesmo sabendo que vai se odiar ainda mais. Ao mesmo tempo, sua prepotência se dá justamente por fazer coisas estúpidas e por odiar a si mesmo: para ele, é essa a condição normal do homem. Quem não odeia a si mesmo não tem cultura ou consciência suficientes para saber que deve odiar:
"Talvez somente eu, em toda a repartição, tivesse permanentemente aquela impressão de que era covarde e servil, e isso se dava justamente porque eu tinha cultura. Mas não era apenas questão de parecer: de fato, eu era um covarde e um escravo. Digo isso sem nenhum constrangimento. Todo homem honesto neste nosso tempo é e deve ser um covarde e um escravo. Essa é a sua condição normal."
Essa primeira parte me prendeu e surpreendeu positivamente, mas não posso dizer o mesmo da segunda. Nela, nosso homem subterrâneo nos leva até os anos de sua juventude, mostrando os acontecimentos que o tornaram esse prepotente e amargurado homem do subsolo. Mas desconfio que ele sempre foi.
É, ao mesmo tempo, hilário e odioso. O personagem se coloca em apuros o tempo inteiro, se inserindo em situações tão absurdas que não tem como defender, tudo para ser aceito em algum meio. Mas não é de despertar empatia: ele não quer ser aceito como um deles, mas que o apontem como o ser superior que ele pensa que é. Pra ele, não basta enxergar a si mesmo como culto. Os outros também precisam enxergar. E, quanto mais ele tenta, mais se afasta. Mais fundo ele penetra no subsolo, onde se orgulha em estar:
"Estamos argumentando seriamente, mas, se não quiserem conceder-me sua atenção, não hei de me humilhar. Tenho meu subsolo."
O narrador é um homem que se contradiz o tempo todo, ora parecendo querer conquistar a empatia do leitor, ora parecendo querer que o leitor o odeie tanto quanto ele se odeia. Ele oscila entre a arrogância e o autoflagelo, entre a solidão e a autossuficiência. Narrado em primeira pessoa como se o narrador estivesse tentando convencer uma plateia, pode passar a impressão de que é do próprio Dostoiévski todo esse ponto de vista, mas a verdade é que não apenas é um personagem criado pelo autor, mas também uma representação da dualidade e da contradição que é a psique humana.
Notas do Subsolo ? ou Memórias do Subsolo, em outras versões ? é um livro angustiante. Não como um livro de suspense onde você não sabe quem é o assassino, mas sabe que tem um. É angustiante porque expõe, a todo momento, a angústia do narrador. A angústia do ser humano. É angustiante porque esse narrador é prepotente, arrogante, odioso, mas também é, acima e talvez como causa de todo o resto, infeliz. Mas é angustiante, principalmente, porque mostra um ser humano dizendo e fazendo coisas que todo mundo já quis dizer e fazer, ainda que jamais admita. E eu não poderia encerrar essa resenha sem uma última passagem pra elucidar o que eu acabei de dizer:
"E no que me diz respeito, eu apenas levei às últimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprios com isso."