r.morel 05/07/2017
Tudo sobre “Piratas do Caribe” veio dele: Stevenson
R. L. Stevenson, em carta para o seu amigo W. H. Henley, sobre o livro “A Ilha do Tesouro”, comentou: “Se isto não encantar os garotos, ora, então eles mudaram muito desde que eu era criança.”
Não se pode negar que o filme Disney-Hollywood ressuscitou o prazer das aventuras piratas com Johnny Depp e demais atores de talento, fama e fortuna; riqueza, poder financeiro!, evidente e transbordante na potência blockbuster da franquia, destroçando bilheterias na trilogia inicial, de sucesso imediato no quarto filme (US$ 55.500.000 só para mister Depp em ganhos com salário) e provável repetição de arrecadação monstro no quinto filme da série prestes a invadir os cinemas do mundo. A discussão monetária na produção de “Piratas do Caribe” gira na casa dos bilhões de dólares.
De maneira igual não se pode negar que tudo (sendo bem ousado na assertiva) visto na grande tela cinematográfica já lemos em “A Ilha do Tesouro” (1883) de Robert Louis Stevenson, autor dos famosos Mr. Hyde e Dr. Jekyll (Stan Lee e Jack Kirby, e o Hulk deles, também devem algo ao escrito escocês pela inspiração base do seu personagem), confirmando, ou reconfirmando, a primazia da Literatura sobre o Cinema para quem gosta de embates entre artes, apreciadores de rixas entre diferentes modos de criativamente se expressar — os partidários do objeto-livro urram que “A Ilha do Tesouro” é melhor! e nele epifanias cabem; os fanáticos pelo produto-filme berram que a película expandiu um universo restrito em parágrafos com imagens IMAX únicas jamais sonhadas por Stevenson ou qualquer literato (“Literachato”, provocam…). Entre os descompensados Lado A/Lado B tendemos à… ora, ao justo-meio onde as qualidades valorizam-se e os defeitos recolhem-se inertes (quando possível).
O relicário pirata é notório, suas lendas, não mais simplesmente folclóricas, são mitológicas e não erraríamos se apostássemos que R. L. Stevenson enxertou na sua narrativa outras tantas histórias, feitos, fatos e causos dos sete mares gravados na sua memória, no seu íntimo, pois o próprio admitiu ser fã de tais empreendimentos marítimos e toda sorte de peripécias, reviravoltas e aventuras neles contidos. No entanto, distantes séculos do marco zero pirata em traduções ao português, restou o trabalho de Stevenson para nos situar no espaço-tempo, “A Ilha do Tesouro” sendo o elemento concreto, e válido, na comparação de invencionices “Literatura x Hollywood”, conflito desleal no atual mundo audiovisual de fotografias coloridas arrebatadoras.
1.O rum: como exemplo é o primeiro quase por ser um não-exemplo, afinal, o quê, macacos me mordam!, esses velhacos desgraçados poderiam ingerir em um inferno, um Grande Nada Vazio rodeado por água salgada?! Um bom e apetitoso brandy no five o’clock tea?! Com mil diabos peludos!, nunca!; e da situação precária de marinheiros e capitães em navios e veleiros insalubres entendemos a fixação pela bebida sagrada, “Yo-ho-ho e uma garrafa de rum!”, o hidromel dos piratas, o rum é obsessão tanto na versão literária quanto na fílmica, mais picaresco no cinema, gancho (sem trocadilho…) para inúmeras piadas com Jack Sparrow e seus parceiros infames e trêbados — o texto de Stevenson, pela época, menos permissiva com vícios, não pinta o álcool e seu abuso como virtude ou fator cool maneiro que trará reconhecimento positivo ao seu usuário sobretudo quando o beberrão é um meliante homicida e ladrão (não nos enganemos, porém; a visão de Stevenson não é de todo maniqueísta, é cinza, nublada, isso é o que se espera do pai de Mr. Hyde e Dr. Jekyll, e um dos personagens mais atrativos é o pirata Long John Silver, homem turvo, que joga lá e cá, um tipo de Capitão Jack Sparrow por assim dizer).
2.O baú com tesouro marcado no mapa com um X: novidade implementada por Stevenson; não dá para culpar Hollywood por todos os males da humanidade e, se acusados forem, os demais filmes (e livros) de pirataria juntamente seriam sentenciados por plágio ao utilizar esse hoje lugar-comum nas suas histórias. Absolvidos…
3.A Marca Negra: dessa cópia, disfarçada em atualização (o novo design arrojado engana em velhas carroças), os roteiristas contratados pelo megaprodutor Jerry Bruckheimer são os responsáveis. A Marca Negra (“The Black Spot”), na conjectura pirata de Stevenson, era um papel que significava, negativamente, estar em evidência, ser alvo de um provável atentado, sua vida por um fio. Nas primeiras páginas da “Ilha do Tesouro” logo surge a misteriosa Marca Negra e, adiante, Long John Silver, o vilão, também recebe a marca, seus ex-comparsas os responsáveis, amotinados agora, em uma das viradas no enredo, porém, sem receio do que virá, Silver alerta que o papel da Marca Negra recebida é uma página bíblica rasgada e que tal ofensa por si só amaldiçoará o agente da blasfêmia. Nos “Piratas do Caribe”, a Marca Negra é passada pelo sinistro Davy Jones para o nonsense Jack Sparrow apenas em um relar de mãos, ou melhor, em um relar de tentáculos e mãos que pré-anuncia a dívida a ser paga, a Marca Negra quase pulsando como as chagas de Cristo, ferida aberta escura na palma da mão.
4.Parlamentação: uma das situações mais divertidas, e “originais”, de “Piratas do Caribe” transcorre ao se dizer, exclamar!, “Parley!”, mesmo em um duelo de espadas, para o combate ser momentaneamente interrompido (os argumentos eficazes podem definitivamente interrompê-lo) e o grupo em desvantagem tirar proveito da capacidade oratória objetivando minimizar os danos, o prejuízo que seria até o fim da sua vida. É cômico porque, no auge da luta, um pirata pego desprevenido grita “Parley!”, pede “altos”, malandro, querendo fugir do pior no pega-pega para capar. Que sacada, hein, povo do cinema, porém, a parlamentação se faz presente na “Ilha do Tesouro” e muito presente pois acontece em instantes decisivos para a história, são artifícios fundamentais para mudar o rumo da narrativa ao construir e desfazer alianças e impor condições de como agir aos personagens. Nos “Piratas…” e na “Ilha…” as negociações verbais são armas deveras úteis no exato nível de importância, para encontrar saídas em problemas e confusões, do cutelo enferrujado e das baionetas afiadas, os tiros de canhão e as espingardas com pólvora velha ensopada — Jack Sparrow um dos mais espertos no quesito.
Os contendores parecem satisfeitos, apesar da balança pender levemente ao livro; “A Ilha do Tesouro”, no seu arcabouço pirata, trouxe inovações de tal modo marcantes para a mitologia bucaneira que, desprovidos de curiosidade, inocentes acharíamos ser comum os ladrões dos mares enterrarem suas pilhagens em ilhas tropicais em baús dourados e marcarem a zona sagrada com um X para não esquecerem as coordenadas os segredos (arapucas) e no futuro sabe lá Deus quando retornarem; tão poderosa é a história de Stevenson que dele também nasceu o pirata da perna de paaau, olho de viiidro, e caaara de maaau, sendo a musical e curta descrição física-psicológica um resumo quase preciso de Long John Silver, antagonista e causador dos problemas enfrentados pelo jovem Jim Hawkins, herói destemido (como um herói deve ser) de “A Ilha do Tesouro”.
Ora, não são todos os piratas maus, com olho de vidro, e perna de pau?! Sim, todos passaram a ser depois de R. L. Stevenson e depois de “Piratas do Caribe” a grande maioria precisará se reinventar para ser doutro jeito, de qual não sabemos, se é que existe espaço para histórias de piratas após a franquia hollywoodiana impregnar com seu estilo e dominar o mercado — o velho, e clássico, pirata da canção é homenageado no filme, ele está lá mas seu olho de vidro, sua cara de mau, sua perna de pau nem coadjuvante ou personagem secundário são, ele é um adorno, figuração, um pedaço de cenário em forma de gente, e seu papagaio falastrão a tiracolo (outra concepção de Stevenson que virou mito) tem mais falas e destaque do que o lobo do mar caquético mudo na sua carranca barbuda hilária, Popeye sisudo.
Das cantigas pelo vento perdidas no tempo à Robert Louis Stevenson e sua ilha do tesouro ao blockbuster capitaneado por Johnny Depp, objetivamente (cientificamente!) afirmam, para conter inimizades, o que se verificou foi uma transmigração de almas, uma adaptação ao meio, uma evolução do entretenimento que saiu do oral ao escrito e jaz no audiovisual.
(Nota: Serge Daney, crítico francês, com infinitos filmes em mente, refletiu “O que vai ser filmado (quase) sempre já foi filmado. E quanto às imagens das quais ainda nos alimentamos, devemos concordar que seu referente não é mais precisamente uma ‘realidade’ que experimentamos, mas sim a experiência imaginária que temos por já tê-la visto em outros filmes, o hábito formado pouco a pouco com a sua visão”. Não só assistimos noutros filmes cenas/planos semelhantes como lemos e ouvimos (vivemos) tais cenas reproduzidas por outrem: é uma sucessão ininterrupta de histórias contadas e recontadas através de instrumentos diferentes, e cada uma dessas obras, boas ou ruins, repete a anterior, inspira a posterior, tecem um quadradinho mínimo na tapeçaria eterna, rabiscam a sua linha no palimpsesto antigo — outro termo provindo de Daney — repleto de experiências moldadas em filmes em livros em… é um pergaminho interminável já decifrado por gregos e troianos que por aqui nós continuamos revisitando crendo sermos os primeiros quando nem os últimos somos: os retardatários da sequência anterior que se encerra, os pioneiros da sequência posterior que se inicia — as duas últimas sentenças parafraseei o irlandês James Joyce… não há nada mesmo a ser dito, parece que muitos vieram antes de nós…)
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