mpettrus 31/03/2022
Padre Amaro, o Fariseu Por Excelência
?O sacerdócio sem vocação leva o padre a dissolução moral?
?Eça de Queirós inaugurou o movimento naturalista em Portugal em 1875, com a publicação de ?O Crime do Padre Amaro?, numa atmosfera que já anunciava a decadência e o desengano português no fim do século XIX. No livro, o autor lança um olhar crítico que desvela a fisionomia da sufocante e mesquinha sociedade oitocentista portuguesa, denunciando a hipocrisia burguesa e religiosa a partir de uma minuciosa análise dos tipos sociais, em seus aspectos físicos e psicológicos, destacando os fatores sociais como motivos norteadores do caráter das personagens. A escrita queirosiana parte, portanto, de uma finalidade transformadora e, de certa forma, profilática, na medida em que aponta o que é, para que assim deixe de ser.
?Eça escreveu uma trama romanesca através da imagem do silêncio, presente em vários momentos de uma narrativa que conta a história do segredo, da dissimulação e daquilo que não pode ser dito. Em um livro de fôlego indiscutível, o discurso literário do autor esteve a serviço do que não podia ser, afinal, verbalizado. Ultrapassando a necessidade das palavras, há a construção de todo um sistema de comunicação que ser manifesta através do silêncio, dos gestos, dos olhares e das pausas.
? Eça cria personagens que se constituem como produtos de uma sociedade amesquinhada, exemplos bem-acabados da hipocrisia e da vaidade burguesas. Tais personagens, em sua maioria, são curiosas, bisbilhoteiras e arrogantes, e, embora sejam criaturas de papel, o grau de atuação dispensado à sua caracterização ? a caracterização física individualiza-as; os tiques, as atitudes e os comportamentos - as torna muitas vezes maus críveis que a própria realidade referencial.
? Logo, percebo que essas características acabam por ser humanizadas através de seus defeitos e limitações. Não há como não se solidarizar com o desencanto de Amélia, com a lucidez do Dr. Gouveia, e com a miserabilidade da Ruça. Do mesmo modo, a canalhice de Amaro extrapola os limites do aceitável, e eu, entre o espanto e o pasmo, sou obrigado a participar de uma trama do qual deveria ser mero espectador.
? Desde modo, é possível afirmar que este romance articula muito habilmente a questão da humanização das personagens: são justamente as suas falhas que as tornarão mais próximas da realidade, conferindo-lhes alguma verossimilhança. Por outro lado, a descrição pormenorizada do quadro social funciona ainda como uma eficiente ferramenta de crítica a sociedade, sobre uma Leiria onde a sombra da Sé se derrama, cobrindo toda a cidade, o romance surge como texto necessário, por fornecer uma denúncia de corrupção clerical num país extremamente religioso como Portugal, talvez o que Eça pretendesse era desvelar onde termina a ?vontade de Deus? e onde começam os desejos e a ganância dos homens.
? Uma das melhores críticas que Eça faz a respeito do poder desmedido do clero é por meio do segredo da confissão, que acaba sempre por ser revelado e usado levianamente. Amaro, para desmoralizar qualquer possível pretendente de Amélia, contava-lhe horrores de quase todos os rapazes de Leiria, e quando ela perguntava como ele sabia, apenas anuía com uma reticência, indicando que lhe fechava os lábios o segredo da confissão.
?O romance de Eça pode ser considerado devastador na medida em que praticamente todas as personagens são marcadas por atos negativos. A começar pelo Padre Amaro, o fariseu por excelência. Os maus exemplos dos padres culminam com Amaro, que nutria um desejo carnal pela Virgem, personificada em Amélia, e perto dela, ele dificilmente lembrava que era padre, reflexo da total falta de envolvimento e compromisso com o sacerdócio: a vocação religiosa.
? No decorrer do romance Amaro foi refinando sua hipocrisia e falta de caráter. Ele não admitia sua culpa, ao contrário, articulou tudo em função de seus interesses e para manter sua posição dentro uma carreira na qual empenha-se. Enquanto Amélia perdera a própria vida, Amaro em Lisboa, segue com a sua, sem correr os riscos de antes porque agora só se envolve com as mulheres casadas.
? Há todo um erotismo guardado no proibido. Amélia poderia ter optado por João Eduardo Barbosa, mas escolheu Amaro porque, para além de também bonito, era uma certa representação do divino natural, consequentemente, era proibido. Desfrutar do corpo de Amaro era, portanto, desfrutar de um Deus. Ao desejar Amaro, Amélia acaba por desejar um outro duplamente proibido: primeiro porque é divino, e depois porque é masculino. Está claro que, ao desafiar o divino, numa sociedade patriarcal, o resultado natural seja a morte.
? Destaco aqui também duas personagens interessantes: Dona Josefa Dias, irmã do Cônego Dias, e Padre Natário. Este era maligno, esperto e questionador, tinha uma língua de víbora, e é também interesseiro. Extremamente rancoroso, atitude em nada condizente com sua condição de sacerdote, Natário, tinha orgulho do próprio ressentimento. Seu traço mais marcante é o rancor.
Ele não se preocupava em afetar ser o que não é. Essa personagem serve-nos na medida em que constitui com bom exemplo do escudo que a Igreja conferia aos seus sacerdotes, permitindo toda a natureza de desmando e crueldade em nome de Deus. Ele encarna o poder da Igreja, que não precisa de justificativas. Desta forma, o poder do Padre Natário é a difamação, e se ele não precisava colar ao seu rosto uma máscara, isto se deve ao fato de que a Igreja já constituía a melhor das máscaras.
? Dona Josefa Dias é a beata asquerosa e decadente e é ladra, é ávida de falar, e quando fala, não fala; grita, geme, exclama furiosamente. Carrega a má fama de ser mexeriqueira. Ela é movida pela curiosidade de saber para, entusiasmadamente, contar. E neste caso, o contar, é na verdade, recontar, porque a fofoca e a difamação distorcem o texto original, tornando-o um exemplo do poder perverso da linguagem. Não há, em todo o romance, personagem mais enfurecida, nada no seu caráter parece oferecer redenção.
? Este romance é um exercício ficcional de denúncia. Filiado à escola literária que o ajudou a fundar, segundo a qual a literatura deveria ser espelho e denúncia, Eça ultrapassa o projeto de representação do real, recriando esteticamente a realidade. Para além de problematizar criticamente o tempo histórico referencial, compreendo que, para além de conjugar formas tortuosas de violência traduzidas em hipocrisia, intrigas, mexericos, invejas e doenças que se abatem sobre quase todas as personagens, este romance escreve também a história de seu tempo, um tempo de opressão e emparedamento, em que é preciso calar para poder dizer.
?Através de um olhar crítico que se coloca como denúncia, Eça percorre os ambientes e os tipos sociais que se amalgamam para compor o triste cenário hipócrita e mesquinho da sociedade portuguesa de seu tempo. É uma obra que tem por seu projeto ideológico denunciar a corrupção do clero e o fez de maneira magistral. Em um enredo cheios de tipos sociais pautados pela hipocrisia e pelo mascaramento, com uma Igreja que abriga uma moral adoecida pelos vícios, esta é uma história de sobreviventes. E sobreviventes onde sobram só os mais fortes, pois estas personagens ousaram romper o doloroso encarceramento que as condenava, aprendendo a única linguagem possível dentro do mais absoluto silêncio.
(31.03.2022)