Marselle Urman 21/04/2024
Fofocas! Mais quentes que qualquer BBB!
Sim. Mas não um fast food de fofocas como o reality. Uma maldadezinha cozida a fogo lento, servida naquele ambiente de cidade pequena estupidamente devota, temperada com ranço e inveja e servida com molho de hipocrisia. É desse nível de gastronomia que estamos falando.
Aqui temos, no começo : Padre Amaro, aquele menino preguiçoso e sem muita verve, mandado pro seminário por ordem de uma importante falecida. Vira padre, e devido a uma pequena corrupção social - ou lobby, talvez - vai para uma excelente paróquia. E lá, o agora homem Amaro, peca. Olha o click bait : qual será o pecado? Julgam pelo começo : o pecado é somente ser um homem jovem e saudável, com sangue quente nas veias?
Não, crianças. Esse é só o click bait, o pecado nunca seria tão simplório, tão raso.
Acompanhamos esse jovem desde antes do seminário, onde lhe ensinavam que "a mulher é serpente, dardo, filha da mentira, porta do inferno, cabeça do crime..."Até o encontro e a descrição de Amélia : aquela outra criatura beata e fraca, mas jovem bonita e com uma irresistível carnação branca e um pouco roliça que gostava, com sua natureza lassa, de ser persuadida e forçada.
Do domínio opressor da igreja católica sobre a vida de cada uma das pessoas. Do apelido de "desviada" que toda a sociedade dava a uma mulher que não frequentava a igreja. Da quase beatificação da figura do pároco, cuja natureza parasita logo se adaptou a tirar proveito e ir crescendo como um sapo inchado na consciência de seu poder. Do conceito, ao descrevem o suposto ateísmo de João Eduardo, de que quem não segue a religião não tem escrúpulos : mente, rouba, calunia. Da figura do confissor como um patrono moral : um pastor que conduz seu rebanho à chicotadas, a mecanismos de punição e recompensa.
"A rapariga é um espírito frágil, como a maior parte das mulheres não sabe se dirigir por si, necessita por isso um confessor que a governe com uma vara de ferro, a quem ela obedeça, a quem conte tudo, de quem tenha medo...é como deve ser um confessor".
De como o papel de um bom católico é seguir cegamente sua autoridade eclesiástica e tudo assentir sem de nada discordar.
Creio que temos algumas igrejas que agem dessa forma, quase 150 anos depois...ou estou enganada?
Mais um recorte que não resisti, esse agora político / econômico:
"- Pra Deus não há pobre nem rico, suspirou a sra. Joaneira. Antes pobre, que deles é o reino dos céus!
- Não, antes rico, acudiu o cônego, estendendo a mão para deter aquela falsa interpretação da lei divina. Que o céu é também para os ricos. A senhora não compreende o preceito. Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem achar-se felizes da pobreza, não desejarem os bens dos ricos, não quererem mais que o bocado de pão que tem, não aspirarem a participar da riqueza dos outros, sob o risco de não serem benditos. É por isso, senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem, vai de encontro à expressa vontade da igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são!"
(Absolutamente genial!)
Poderia falar muito mais sobre esse livro.
Mas vou resumir que ele teve um significado pessoal para mim - o ídolo banhado a ouro para Amélia, cujo dourado saiu como tinta em suas mãos, revelando embaixo apenas o real e mal talhado boneco de madeira escura.
E também que, sem spoilers, fica sempre a maravilhosa mensagem de esperança cínica do Realismo : nada importa demais. A vida segue, e o tempo cura. Aquela revelação dramática, aquela vergonha que quase tirou sua vida...passa. E vira...quase nada depois.
São Paulo, 22 de abril de 2024.