Coruja 02/05/2017Publicado no início da década de 60, no auge do movimento por direitos civis nos Estados Unidos, O Sol é para Todos é considerado um dos mais importantes romances do século XX e um pilar da própria identidade americana. É um livro que estava há bastante tempo na minha estante e ao qual vim dar prioridade mês passado, vez que ele foi indicado para debate no Clube do Livro - tendo rendido um dos melhores debates do grupo, com direito a risos nostálgicos e olhos embargados. E que também me fez criar uma nova categoria de livros na minha cabeça: a de “títulos que eu gostaria de ter lido na faculdade”, pois o romance de Harper Lee ensina mais sobre ética e justiça que muitos dos seminários que tive de assistir sobre o assunto quando estudante.
A história se passa numa cidade do interior do Alabama - Maycomb - abarcando um período de três anos no início da década de 30. Narrada por Jean Louise “Scout” Finch, que inicia a história com seis anos é primeiro uma série de aventuras de verão, com Scout seguindo fielmente o irmão mais velho, Jem e o melhor amigo, Dill nas tentativas de atrair para fora de casa o ermitão Arthur “Boo” Radley; para então se transformar num drama de tribunal cuja injustiça do veredicto contrasta com a figura calma e centrada do pai de Scout, o advogado Atticus Finch. O julgamento do negro Tom Robinson, acusado de estuprar uma jovem branca, Mayella Ewell (inspirado em fatos reais, no que ficou conhecido como Caso Scottsboro, em 1931) torna-se o centro da narrativa quando Atticus aceita defender o rapaz. Numa comunidade extremamente racista - estamos falando do interior sulista dos Estados Unidos afinal - essa decisão afeta as vidas de Scout e Jem, que a princípio não conseguem entender nem o porquê das acusações que sofrem nem os motivos do pai para ir contra o que o resto da cidade crê ser certo. Pouco a pouco, contudo, Scout começa a entender que Robinson foi acusado injustamente e que há muito mais acontecendo ao seu redor do que se aparenta.
Há quem critique a forma como Lee retratou os afro-americanos em seu romance, como ‘vítimas indefesas’ que precisam constantemente da proteção dos brancos. Talvez eu pudesse concordar que a tragédia de Robinson estava servindo apenas de escada para o desenvolvimento de Atticus não fosse o fato de que a história é narrada por Scout e isso dá um foco diferente para a narrativa: não se trata simplesmente de apresentar uma história sobre injustiça; mas de demonstrar a ideia de que preconceito é algo que se aprende, que se reproduz por exposição ao grupo, e que pode ser mudado, desaprendido quando confrontamos a realidade do medo do Outro, do diferente, do estranho - algo que é também explorado na curiosidade das crianças em relação a Boo Radley.
Scout entende que o que está acontecendo não está certo, mas ainda não tem compreensão do tamanho da injustiça que está sendo feita; mas é possível enxergar, em sua narrativa, o preciso momento em que Jem entende, em que sua inocência de criança termina. É quase possível ouvir seu coração se partindo quando o veredicto dos jurados é lido. Embora Scout amadureça ao longo da história, é Jem que faz de O Sol é para Todos um romance de mudança, ‘coming of age’.
O julgamento de Robinson é um aprendizado para as crianças, e o é, também, para a sociedade de Maycomb. Como bem observa Miss Maudie, embora o resultado não seja perfeito, é certo que Atticus, em sua defesa, fez os jurados - todos eles brancos - refletirem por um momento para além de seus preconceitos e criação. A justiça, aqui, não é um direito, mas um privilégio. Apesar disso, de um sistema criminal bastante imperfeito, ele ainda é a melhor alternativa. Do contrário, o resultado seria o linchamento público, o triunfo da histeria coletiva e do padrão moral da sociedade contra a consciência individual - e esse confronto gera uma das cenas mais impactantes do livro.
Nesse contexto, Atticus Finch é mais que um herói: é pilar de ética e moral de Maycomb, um dos bastiões do panteão literário americano. E ele conquista essa posição não com atos de grandiosidade, mas na consistência de suas atitudes. Atticus vive seus princípios no dia a dia e é isso, como nos observa Miss Maudie, que o faz admirável. A lição de Atticus para seus filhos e para os leitores do romance, é praticar a empatia, colocar-se no lugar do outro para enxergar a situação antes de começar a fazer julgamentos. É reconhecer que a vida pode não ser justa, mas que isso não nos exime de fazer o certo, ainda que seja doloroso.
A despeito das difíceis lições e do final agridoce, O Sol é para Todos é um livro que se encerra com esperança, que nos deixa com lágrimas, sim, mas também com um sorriso. É uma leitura que não queremos largar, que passa rápida e que nos força a refletir sobre nossas próprias atitudes e consciência. Em tempos de Lava-Jato e escândalos diários no noticiário, é uma lição valiosa sobre ética e justiça.
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