andre.marinhocosta 23/08/2020
Realista ou romântico? Um pouco dos dois
A divisão da obra machadiana entre os períodos romântico e realista é últil porque permite acompanhar a evidente evolução estilística do maior escritor da literatura brasileira. Mas ela encontra deficiências quando se depara com exemplares como A Mão e a Luva, um híbrido com elementos marcantes das duas fases literárias.
É difícil dissociar totalmente o livro da escola vigente durante a maior parte do século XIX. A descrição sobre a paixão avassaladora de Estevão abre a narrativa com os típicos atributos românticos. Sentimental ao extremo, ele é arrebatado por um amor descomunal por Guiomar, uma jovem órfã que, por sorte do destino, é adotada por sua madrinha rica. A senhora, uma baronesa, também é acometida por uma tragédia, ao perder a filha, e a afilhada acaba ocupando posição central em seu coração.
Até por conta das circustâncias, Guiomar é um tanto quanto fria e se sente entediada ao perceber o envolvimento afetado de Estevão. Ao mesmo tempo, também não se interessa pelo playboy Jorge, sobrinho da baronesa e, portanto, preferência dela. Um terceiro nome entra na jogada, Luís Alves, amigo de Estevão, que até demonstra interesse pela menina, mas não tem muito tempo - ou paciência - para se prender em cortejos e flertes.
Para o leitor ciente de que A Mão e a Luva precede a guinada realista do Bruxo do Cosme Velho, os primeiros capítulos e a apresentação frívola dos personagens masculinos são coerentes. O cenário bucólico, distante da efervescência urbana de obras como "Dom Casmurro", também ajuda a inserir a novela em seu período.
No entanto, a surpresa emerge quando a narrativa passa a focar em Guiomar, uma protagonista feminina bem diferente das grandes heroínas românticas. Calculista, embora não oportunista, ela sabe bem que sua posição social deriva exclusivamente do laço com a madrinha. Portanto, em cada passo que dá, pensa nas consequências que pode ter em suas relações com a senhora. Ainda assim, a personagem não chega a ter a sensualidade explícita de Capitu, o auge da representação feminina na obra machadiana.
A ironia do autor, que eternizou a célebre trilogia realista, ainda aparece de forma sútil, mas está lá. A visão caricaturada dos homens, sobretudo Estevão e Jorge, surge quase como uma sátira do exagero romântico e as contradições da alta sociedade fluminense são recorrentes.
São por fatores como esse que A Mão e a Luva fica descolado de qualquer gênero em que tenta se encaixar. Talvez por isso tenha sido recebido com certa resistência pela crítica contemporânea - o que justifica o cárater extremamente folhetinesco de seu sucessor, Helena. Para o entusiasta dos últimos anos da carreira de Machado, a falta das características mais marcantes pode ser frustrante. Mas uma leitura surperficial pode ser enganosa: a sofisticação narrativa de A Mão e a Luva está no subtexto.