Sô 27/03/2017Fiquei perplexa com a minha quase total ignorância a respeito da história da China enquanto lia esse livro. Felizmente, ao fechar o livro senti que isso não era mais uma verdade. Obviamente não terminei a leitura e me transformei numa perita no assunto, mas completa ignorante, não sou mais.
A autora fez um belíssimo trabalho, narrando detalhadamente a vida de três gerações de mulheres – sua avó, sua mãe e a dela mesma - vivendo sob as várias mudanças políticas ocorridas nos últimos 100 anos na China. Quando eu digo detalhadamente é detalhadamente mesmo. Iremos acompanhar ano a ano tudo o que ocorreu com elas – na verdade não somente com elas, mas tendo elas como foco -, o que ás vezes era um pouco cansativo, confesso, mas nunca tedioso. Não iremos somente ler sobre a vida desses personagens, como também ganharemos de brinde uma excelente aula de história sobre a China.
Cada uma dessas mulheres é utilizada mais para representar um período político/histórico na China. Começando com a avó, que foi uma das últimas de sua geração a praticar a amarração dos pés – Pés de Lótus – algo muito comum entre as mulheres que começou a ser abolido a partir do século XX. Além disso, era concubina - outra prática que viria a ser abolida com a ascensão do comunismo - de um general caudilho, com quem teve sua filha, a mãe da autora.
A mãe dela era bastante engajada politicamente e se identificou com a proposta comunista. No Partido conheceu o marido e pai da autora, e devo confessar que como leitora, surgiram sentimentos mistos em relação a ele. Como ele lutava por uma China incorruptível – exatamente o oposto do que era o país até então – ele jamais usufruía de suas regalias por ser membro do Partido de forma indevida. Quer um exemplo? Ele tinha direito a um carro, mas sua esposa não, e quando ela estava passando por uma gravidez complicada, em nenhum momento ele ofereceu carona para a esposa, fazendo com que ela fosse a pé ou de bicicleta ao trabalho. Ele defendia que essas corrupções pequenas estragavam o país, e ele como membro do Partido tinha que servir de exemplo para todos ao redor. E realmente, até o fim ele foi conhecido por ser uma pessoa de princípios, até mesmo quando deveria ter jogado tudo para o alto, não só para o próprio bem, como o de sua família. Se no início eu tinha ódio das passagens dele, da metade em diante, ele foi de longe o meu personagem preferido, e foi com muita tristeza que fui lendo a sua derrocada.
A autora por sua vez, nasce sob o domínio do comunismo, mas como filha de membros de alto escalão do Partido, tem muitos privilégios que a grande maioria da população não tem. É interessantíssimo o seu relato sobre o dia a dia sob esse regime. Ela fala, entre outras coisas, sobre as lavagens cerebrais para deificar Mao – chegam a ser cômicas de tão absurdas! - e os vários estágios da Revolução Cultural.
Seus pais, comunistas fervorosos até então, começam a se desanimar com a situação caótica em que vivia o país, principalmente quando se iniciou O Grande Salto Para Frente, na qual toda produção agrícola foi suspensa para produzir aço, que resultou na Grande Fome Chinesa. Sua família passa a perder prestígio com o desenvolvimento da Revolução Cultural, que nada mais era do que uma desculpa para invejosos caírem em cima de suas vítimas. A família dela, por ter gozado de muito privilégio, era uma das perseguidas e os relatos de sofrimento pela qual sua família passava são de cortar o coração.
Mas o mais interessante mesmo é adentrar na cabeça dela, na qual ela suprimia qualquer tipo de pensamento contrário a todos esses “ensinamentos” e se sentia muito culpada ao tê-los. É aí que a gente percebe duas coisas: esse negócio de lavagem cerebral existe mesmo, sendo muito difícil se libertar já que está incutido no subconsciente das pessoas, e exatamente por isso, requer uma ação do individuo para mudar sua situação. No caso da autora, essa ação foi ler. Graças ao mercado negro, ela teve acesso a muitos livros. Na época, buscar qualquer tipo de incentivo à educação era visto como antirrevolucionário. As escolas pararam de funcionar por 6 anos. Médicos se tornavam médicos pela prática. Intelectuais eram sempre denunciados. Num mundo assim, quem correria atrás de educação quando isso significaria mais problemas? O governo claramente queria sua população o mais burra possível, e quanto mais burra a população, mais fácil sua manipulação.
Posteriormente, a educação foi reaberta e as escolas passaram a ensinar de fato. A autora agarra a oportunidade de estudar fora, e no fim do livro encontramos uma China bem mais aberta e tolerante, contando até com um protesto – o da Praça da Paz Celestial -, algo totalmente impensável até uns anos antes.
No fim da leitura percebi que aquela frase “conhecimento é poder” nunca fez tanto sentido quanto neste livro. O conhecimento é libertador mesmo.