Alan kleber 05/07/2024
?Coisas são ditas mesmo quando se cala.?
"E disse a mim mesmo que eu era um frágil pecador doendo-me com meus casos pessoais enquanto estavam por acontecer eventos de tanta importância para a história da cristandade. Comparei a pequenez das minhas penas à grandiosa promessa de paz e de serenidade marcada na pedra do tímpano. Pedi perdão a Deus pela minha fragilidade, e atravessei mais sereno o umbral."
"Em breve terei me achegado ao meu princípio, e não creio mais que seja o Deus de glória de que me falaram os abades de minha ordem, ou de alegria, como acreditavam os menoritas de então, talvez nem mesmo de piedade. Gott ist ein lautes Nichts, ihn rührt kein Nun noch Hier? Penetrarei logo nesse deserto imenso, perfeitamente plano e incomensurável, em que o coração verdadeiramente pio sucumbe bem-aventurado.
Afundarei na treva divina, num silêncio mudo e numa união inefável, e nesse afundar-se será perdida toda igualdade e toda desigualdade, e naquele abismo meu espírito perderá a si mesmo e não conhecerá nem o igual nem o desigual, nem nada: e serão esquecidas todas as diferenças, estarei no fundamento simples, no deserto silencioso onde nunca se viram diferenças, no íntimo onde ninguém se encontra no próprio lugar. Cairei na divindade silenciosa e desabitada onde não há obra nem imagem."
Quando embarquei na leitura de "O Nome da Rosa" de Umberto Eco, esperava um romance de mistério ambientado em um mosteiro medieval, algo que pudesse me entreter por algumas horas. O que encontrei, no entanto, foi uma obra complexa, repleta de simbolismo, crítica social e uma profunda reflexão sobre a natureza do conhecimento e do poder. Este livro é uma verdadeira viagem intelectual, onde cada página desafia e instiga o leitor a questionar as estruturas de pensamento estabelecidas.
Eco nos transporta para um mosteiro beneditino no século XIV com uma habilidade impressionante. A descrição do local é tão detalhada que quase se pode sentir o cheiro de pergaminho velho e o frio das pedras. Mas o mosteiro não é apenas um pano de fundo para a trama; ele é um personagem vivo, pulsante, cheio de segredos e armadilhas. A biblioteca, em particular, é um labirinto tanto literal quanto metafórico, simbolizando a busca tortuosa pelo conhecimento.
Guilherme de Baskerville, o protagonista, é uma figura que encanta e intriga. Eco o molda à semelhança de Sherlock Holmes, um homem de lógica implacável e curiosidade insaciável.
Um frade franciscano e ex-inquisidor, que se destaca por sua mente lógica e abordagem científica. Guilherme é uma figura fascinante que utiliza métodos dedutivos para resolver os mistérios que se desenrolam no mosteiro. Sua mente analítica e curiosidade insaciável o colocam em contraste direto com a mentalidade dogmática e supersticiosa da época.
Adso de Melk, o jovem noviço e narrador da história, é o nosso guia pelo mundo intrincado do mosteiro. Sua visão ingênua e curiosa nos permite acompanhar a evolução de sua compreensão do mundo. Adso começa como um observador passivo, mas à medida que a trama avança, ele se torna um participante ativo, questionando e aprendendo. Sua transformação reflete a jornada intelectual que Eco deseja que o leitor empreenda.
Os monges do mosteiro são igualmente interessantes, cada um com suas próprias complexidades e segredos. Jorge de Burgos, o bibliotecário cego, é especialmente intrigante. Ele vê o riso e o conhecimento como ameaças à ordem estabelecida, representando a repressão e o medo do desconhecido.
A trama começa com a chegada de Guilherme e Adso ao mosteiro, onde estão para participar de um debate teológico. Porém, a situação rapidamente se complica quando um monge é encontrado morto em circunstâncias misteriosas. Guilherme, com sua experiência em investigação, é chamado para desvendar o caso. À medida que mais monges são encontrados mortos, cada um em situações mais bizarras que o anterior, a tensão cresce.
A investigação de Guilherme o leva a explorar a biblioteca do mosteiro, um local proibido e perigoso. Aqui, Eco tece uma trama repleta de pistas, códigos e segredos. Cada morte parece estar ligada a um livro específico, e a busca por este livro leva Guilherme a confrontar não apenas os mistérios do mosteiro, mas também os próprios dogmas da Igreja
.Paralelamente à investigação dos assassinatos, Eco introduz debates teológicos e filosóficos que revelam as profundas divisões dentro da Igreja sobre questões como a pobreza, a heresia e o poder. Esses debates são tão centrais à trama quanto os próprios assassinatos, refletindo o tumulto intelectual e espiritual da época.
Um dos temas mais marcantes do livro é a tensão entre fé e razão. Guilherme de Baskerville, com sua abordagem racional e científica, representa o início do pensamento crítico que desafiaria a supremacia da fé cega. Por outro lado, os monges que se agarram ao dogma representam a resistência ao progresso intelectual e a manutenção do status quo.
A biblioteca do mosteiro, com seus livros proibidos e passagens secretas, simboliza a eterna luta pelo controle do saber. É um lembrete de que a censura e a manipulação da informação são ferramentas poderosas nas mãos de quem detém o poder.
A escrita de Eco é rica e densa, repleta de referências literárias, filosóficas e históricas que adicionam camadas de profundidade à narrativa. É uma delícia para os intelectualmente curiosos.
A estrutura do romance, dividida em dias e horas, imita a rotina monástica e aumenta a tensão a cada momento, criando um ritmo quase hipnótico.
Eco utiliza uma linguagem que, embora erudita, mantém a clareza, guiando o leitor através das complexidades da trama sem perder o engajamento. Cada capítulo é uma peça de um quebra-cabeça maior, e Eco desafia o leitor a decifrar as pistas junto com Guilherme, criando uma experiência de leitura profundamente interativa e recompensadora.
Eco joga com o leitor, desafiando-o a decifrar os códigos e a entender as múltiplas camadas de significado. Não é apenas uma história; é um quebra-cabeça intelectual que provoca, instiga e, às vezes, exaspera. Mas é precisamente essa complexidade que torna "O Nome da Rosa" uma obra tão envolvente e duradoura.
"O Nome da Rosa" é uma obra que desafia e enriquece. Umberto Eco nos entrega um romance que é ao mesmo tempo um thriller de mistério e uma meditação profunda sobre a natureza do conhecimento, a fé e o poder. Sua narrativa densa e erudita pode ser desafiadora, mas é essa complexidade que torna a leitura tão gratificante
Se você busca uma leitura que vá além do entretenimento, que provoque reflexão e instigue o questionamento, "O Nome da Rosa" é uma escolha indispensável. Eco nos mostra que a literatura pode ser uma arma poderosa, iluminando os cantos mais escuros da mente humana e da história. É uma obra que desafia, provoca e, acima de tudo, enriquece o leitor, deixando uma marca duradoura em nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.