Coruja 30/04/2019Embora o novo filme ainda não tenha estreado, permitindo-me comparações com o livro, escolhi Mulherzinhas para o tema do mês no Desafio Corujesco porque tinha de lê-lo de qualquer maneira para o debate do clube do livro de bolso (que também foi agora em abril). Engraçado que tinha praticamente certeza de que apenas assistira a adaptação de 1994, com Winona Ryder no papel de Jo March, mas descobri que já tinha até escrito resenha do livro cá no blog, em 2013... exceto que naquela ocasião, simplesmente detestei a história. Seis anos depois, minha reação a ela foi completamente diferente.
Mas antes de entrar nessa questão, tratemos do enredo propriamente dito. Mulherzinhas acompanha as quatro irmãs March - Meg, Jo, Beth e Amy - ao longo de um ano, enquanto o pai está servindo no exército, durante a Guerra Civil Americana, e após a família ter perdido a própria fortuna. Amparadas pela mãe, a sábia senhora March, as meninas precisam amadurecer antes do tempo, numa jornada repleto de conflitos emocionais e morais, de aparências e vaidade contra princípios e dignidade. A ação ocorre toda num ambiente doméstico, sem confrontos vilanescos: a convivência familiar, especialmente na amizade das irmãs, é o foco aqui.
Meg, a mais velha, é a que mais se ressente da riqueza perdida - talvez por melhor se lembrar do esplendor de outrora. Trabalhando como preceptora de uma família rica, ela tem um constante contraste entre a situação confortável de seus empregadores e aquela que vive em casa. Os March sobrevivem bem e são capazes de ajudar seus vizinhos, mas não têm dinheiro para novos vestidos e luvas, chapéus e carruagens. Luxo, contudo, não substitui caráter, gentileza e paz de espírito, algo que certamente sobra no lar das meninas.
Jo, a protagonista, está mais interessada nas brincadeiras dos garotos que em prendas femininas. Criativa e inteligente, tem um pavio bem curto, mas também é generosa com aqueles que ama. Jo sonha em publicar as histórias que escreve, mas, enquanto o sucesso não chega, serve como dama de companhia a uma tia viúva que é um dragão em forma de gente.
Por fim, há Amy, a caçula, que tem uma avaliação bem inflada da própria importância e gosta de falar com palavras difíceis (muitas vezes ditas errado), estrangeirismos (aplicados de forma incorreta) e ditos populares invertidos. Amy serve de grande alívio cômico ao longo da história, mas também tem suas virtudes.
Mulherzinhas é também um prato cheio para se falar de papéis femininos. Cada uma das meninas representa diferentes interpretações de feminilidade e, em certa medida, empurram os limites tradicionais da mulher na sociedade do século XIX. Há algo de biográfico nessa jornada: Louisa May Alcott recebeu uma educação esmerada, tendo recebido lições de gente como Henry David Thoreau, Ralph Waldo Emerson e Nathaniel Hawthorne, amigos da família. Devido à dificuldades financeiras do pai, ela precisou trabalhar desde cedo; tornou-se abolicionista e sufragista e serviu como enfermeira durante a Guerra Civil. Jamais se casou. Sua obra serviu de inspiração a outros clássicos do gênero, como O Jardim Secreto e Anne de Green Gables.
Rende-se aqui um interessante contraste com romances britânicos mais ou menos do mesmo período. As irmãs March mais velhas trabalham, recebem seu próprio sustento, ajudam com as despesas de casa; o casamento não é o fim último e única esperança da família - diferente de outro conjunto de irmãs, as Bennet de Orgulho e Preconceito, que têm uma situação social e financeira bastante parecida. Até mais que a distância temporal entre a publicação de ambos (cinquenta e cinco anos), é a diferença cultural entre os princípios do Velho Mundo, que valorizam a aparência de dignidade e aqueles do Novo Mundo, interessados em fazer a própria fortuna através do trabalho, movidos pelos ditames do puritanismo calvinista.
Boa parte da razão de não ter gostado do livro quando da minha primeira leitura se deve ao fato de eu ter interpretado a história como pregação pura. Tento a não gostar de livros que tentam me doutrinar, ou dizer como devo fazer ou desfazer as coisas. Não há nada que eu deteste mais do que gente que se mete na vida dos outros, mesmo que seja o autor de uma história. Eu provavelmente o li numa época em que estava sem paciência para certas influências externas (termo que pode ser usado como sinônimo para 'tias casamenteiras') e isso me fez querer atirá-lo pela janela. Isso, porém, são conjecturas, pois não lembro exatamente o que me passava à mente na época...
Seja como for, seis anos é um bom tempo entre uma leitura e outra, o suficiente para que algumas mudanças tenham ocorrido, para que eu tenha também amadurecido. Redescobrir Mulherzinhas agora foi uma delícia, porque foi uma história que fez com que eu me sentisse acolhida, abraçada. Ri, chorei, torci, envolvi-me integralmente com a história. Um bom exemplo de como a experiência pessoal do leitor influencia na interpretação do texto. Não posso ainda me esquecer que essa edição que li agora compreende apenas o livro publicado em 1868; a que li antes reunia num único volume Mulherzinhas e uma das continuações da história, Boas Esposas, que costuma ser adaptado junto nos filmes. Não sou agora capaz de me lembrar se me ofendeu em alguma coisa a forma como os romances das irmãs foi desenvolvido, mas isso também pode ter sido um fator para meu desgosto.
Uma última observação... um dos temas de debate no clube foi o título. Muita gente que não conhecia a história disse que ficou com um pé atrás ao vê-lo: o diminutivo usado na tradução costuma ter uma conotação depreciativa em português. O filme de 1994 soube resolver esse problema, ao adotar o título de Adoráveis Mulheres. Considerando que o nome do livro é uma referência às palavras do senhor March sobre como suas filhas tiveram de amadurecer e se tornar 'pequenas mulheres', talvez uma tradução mais literal de Little Women pudesse ter sido utilizada.
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