Tiago 29/06/2024
Se só seguirmos aquilo que entendemos, mal daremos um passo.
Em algum lugar li algo como “se só seguirmos aquilo que entendemos, mal daremos um passo”. Para a leitura de Ulysses, que tentei fazer há exatos dez anos, 2014, eu não consegui dar mais do que alguns passos, pois não saí do segundo episódio. E olhe que eu já tinha na bagagem a leitura de Virginia Woolf e Clarice, que também faziam experimentos com o fluxo de consciência e desconstruções na estrutura de suas prosas. À época eu estava lendo a tradução de Houaiss. O desafio, de todo modo, não havia sido completamente descartado. Sabia que aquele livro ainda seria enfrentado por mim. Só dez anos depois, agora em 2024, que ousei uma segunda leitura, e sem dúvida Ulysses se tornou um dos marcos literários em minha vida de leitor.
Caetano Galindo, tradutor da edição da Penguin, diferencia o enigma do mistério. Enquanto o primeiro convoca uma resposta, o segundo não. Há muitos enigmas em Ulysses. O primeiro dle é com certeza a estrutura do texto, que o leitor, a medida que toma coragem de seguir adiante, vai maravilhosamente ensinando a própria mente a se adaptar à estranheza daquela estrutura bizarra que até então ele não havia se deparado. O mistério é a visão bizarra e não solucionada de alguns personagens terem visto um outro personagem, morto, andar pelas ruas.
Há uma imensa fortuna crítica sobre Joyce e Ulysses, quase nada eu seria capaz de acrescentar a ela e não tenho aqui o interesse em repeti-la. Desejo acrescentar. Posso contribuir com o relato de minha experiência de leitura. A primeira delas é que quando o livro me fisgou de fato, eu estava no primeiro episódio em que Leopold Bloom surge. Ali eu já havia entendido que o romance de Joyce era antes de tudo um exercício com a linguagem - como todos os romances de alguma forma são, mas o são em um modelo já inventado, numa estrutura já preestabelecida, e o leitor pode até se surpreender com a história, mas não com a estrutura do texto. Aqui a invenção com a linguagem, com a estrutura de um texto, é levada ao extremo, e muito do que foi produzido depois, até hoje bebe mesmo que inconscientemente das consequências que Joyce trouxe para a literatura e outras linguagens artísticas.
É preciso amar a linguagem para fruir da leitura de Ulysses. Das possibilidades que a linguagem oferece e que podem ser expressas em um texto. O que Joyce revela com Ulysses é que não é a linguagem que nos habita, mas nós que habitamos a linguagem. Rompendo as barreiras do que é possível fazer com ela, ele mostra que seus limites são ainda inexplorados, inalcançáveis, e que ela se transforma com o tempo: para o projeto que Joyce tinha de literatura moderna, já não cabia mais um romance escrito em estrutura formal. O narrador, a narrativa, a forma e as próprias palavras deveriam sofrer uma profunda transformação. E se essa transformação é possível, é porque dentro da linguagem um escritor pode ir além dos limites que até então eram impostas a ele, não a linguagem, visto que a linguagem não tem um limite, o escritor, esse sim, tem.
Muito se repete sobre Ulysses, um livro de mais de mil páginas, tratar de um dia da vida de um personagem. Exatamente por isso, lê-lo causa no leitor uma sensação nova, de que cada sujeito, se visto como Leopold Bloom é visto, atravessa em seu dia uma odisséia. Ele portanto transforma a forma com que o leitor, se tomado pelo fato de ser um livro que põe uma lupa caleidoscópica sobre o protagonista, olha para si e para os outros: “então há isso tudo aí também em você”, ele seria capaz de falar para algum estranho ao seu lado. Não há mais nada de banal no enredo, se assim você considera, como não havia mais nada de banal em um único dia de vida. Considerando que na história da existência, passaremos mais tempo sem existir do que existindo, de fato cada dia é crucial e único.
É preciso dizer que, nessa primeira leitura, foi crucial para mim acompanhar antes de cada episódio a leitura de cada capítulo de “Sim, eu Digo Sim”, de Caetano Galindo. Nele, Caetano ensina o leitor a andar de bicicleta sem as rodas. Ele antes desenvolve no leitor de primeira viagem, sobretudo aquele que irá fazer sua introdução a Joyce com Ulysses, o prazer de estudar o romance enquanto o lê. Pois aqui se trata de um texto que considera o leitor tudo, menos burro. Muitas coisas não são dadas de mão beijada, e isso, ao invés de empobrecer a narrativa, na verdade a enriquece. Fazer o mesmo que fiz, acompanhar a leitura de Ulysses com o guia de Galindo, seria o conselho que eu daria a um leitor de primeira viagem.