Lucas 06/08/2022
O auge veio e se foi cedo demais: Os mais difíceis marcadores de Garrincha foram as garrafas
Manuel dos Santos: poucos nomes são tão fielmente brasileiros. O mais famoso deles é o registro legal de Garrincha, maior ponta direita da história do futebol e que carrega consigo uma miríade incomparável de sentimentos quando pronunciado: nostalgia, lenda, graça, ingenuidade, tudo isso e muito mais elementos (contraditórios entre si, diga-se). E para que haja esse vislumbre (já que a compreensão plena dele em si é impossível) do que foi Garrincha, há a biografia do escritor Ruy Castro (1948-): Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha é referência máxima de "literatura" esportiva, que neste caso transcende as quatro linhas dos muitos campos que o biografado atuou.
Ruy Castro, num soberbo trabalho de pesquisa (deve ter sido impressionante o esforço em investigar e depois narrar as origens genealógicas de um personagem tão obscuro quanto Garrincha) disseca em pouco mais de 500 páginas (na edição da Companhia das Letras) a trajetória pessoal do "anjo das pernas tortas", bicampeão do mundo com a seleção brasileira e melhor (e não maior) jogador da história do Botafogo de Futebol e Regatas. São rótulos óbvios e, logicamente Castro os compõe com a maestria digna de Didi, mas, ao olhar para o livro depois de lido, o que prevalece é o olhar para quem foi Manuel dos Santos: a criança (cujo apelido foi dado em função da semelhança com um passarinho comum de Pau Grande, distrito de Magé/RJ, sua terra natal) e depois o homem adulto. E o grande baluarte da biografia é o de que ela não se perde ou tende a qualquer uma destas vertentes.
Ao jogador Garrincha, sobram predicados. Recentemente, completou-se seis décadas do seu auge futebolístico quando, na ausência de Pelé, tomou para si a responsabilidade e venceu praticamente sozinho a copa de 1962 no Chile. Seus dribles espalhafatosos e por vezes hilários, aliados aos arremates e cruzamentos de direita, são conhecidos e até hoje referenciados pelo amante de futebol que estava longe de ver tudo aquilo. A copa do Chile foi o clímax de seu desempenho, mas o mundo já tinha visto Garrincha (especialmente ele e Pelé) e companhia destruírem o futebol "científico" da União Soviética na copa da Suécia em 1958 e depois levantarem a primeira taça da Copa do Mundo pelo Brasil. Ruy Castro conta tudo isso, aliado a um papel esclarecedor, já que poucos personagens futebolísticos são cercados de tantos mitos (o lendário primeiro treino de Garrincha no Botafogo, por exemplo, que Castro descreve com o primor de poesia e verdade que aquele momento merece).
Tais mitos, entretanto, não são somente anedotas folclóricas: o que de fato aconteceu com Garrincha em seus últimos vinte anos de vida, se não fosse pela biografia de Castro, seguia em praticamente total desconhecimento do público. Nessa nova fase, um personagem fundamental surge no livro: a cantora Elza Soares (1930-2022) é a grande fonte deste "arcabouço mitológico"; durante praticamente a vida toda desde então, Elza foi estigmatizada como a mulher que destruiu a família de Garrincha (ele já era casado e pai quando ambos se conhecerem) o que acabou por conduzir o personagem ao seu declínio físico e moral que os anos lhe descarregaram. A biografia de Ruy Castro, entretanto, esclarece muitos pontos e fortalece o caráter resiliente e corajoso dessa musa da música brasileira (e alguns de seus desvios de caráter também).
Como botafoguense, ler a biografia do melhor jogador que já vestiu essa camisa listrada é estar em contato com a fase áurea do clube. Manga; Joel, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Airton e Didi; Garrincha, Amarildo, Quarentinha e Zagallo. A escalação do lendário Botafogo de 1962, decorada por todo botafoguense minimamente fanático (e que traz consigo cinco titulares da seleção campeã mundial de 1962, algo inigualável em qualquer outro selecionado brasileiro campeão do mundo) traz momentos de enorme orgulho, sentimento que há muito não inunda os corações alvinegros. Entretanto, o encanto pelo futebol romântico daqueles tempos atinge todos os apaixonados por futebol, não apenas botafoguenses (o próprio Ruy Castro é flamenguista). Desse modo, a parte "futebolística" do livro é maravilhosa, mas um pouco mais para os botafoguenses.
Adaptando o papel do Botafogo na relação com Garrincha na prática, o que se vê é uma maior complexidade e céus mais nebulosos. Ruy Castro também desmistifica alguns elementos neste entorno: o Botafogo sugou em demasia o seu craque (assim como todos os outros citados ou não), mas a diferença é que Garrincha era absolutamente antiprofissional, até mesmo para o futebol daqueles tempos. Ao não ser profissional, Garrincha não era uma má pessoa, diga-se, só tinha um estilo de vida peculiar, exposto e discutido em sua biografia. E esse desapego a compromissos, tratamentos e disciplina é um traço da sua conhecida ingenuidade. Garrincha era praticamente analfabeto, tinha motivações bem modestas, não ligava para aspectos materiais e comerciais... Enquanto esta inocência se restringia aos gramados, isso aumentava a aura sobre o jogador. Mas com o passar dos anos, o seu declínio físico natural foi acentuado em função dessa despreocupação para consigo mesmo.
Este elemento conduz à dependência alcoólica, que acabou por matá-lo. A segunda metade da biografia é marcada pelo trágico e Ruy Castro descreve com uma minúcia assustadoramente real os fatos que acabaram levando Garrincha ao alcoolismo, drama este compartilhado por muitos brasileiros desde sempre (especialmente os mais pobres). Afinal de contas, é difícil conhecermos qualquer pessoa que não tenha, mesmo que um parente secundário, algum familiar que tem ou desenvolveu dependência alcoólica. E Castro descreve uma realidade comum a estes indivíduos através de uma linguagem provida de detalhes técnicos elucidativos.
A biografia de Garrincha escrita por Ruy Castro é incrivelmente completa. Nela, conhecemos um pouco mais da história desse lendário jogador, mas ao mesmo tempo deste homem e marido problemático, sem os mitos (bons ou não) que o envolvem. Amado e desprezado por muitos, ignorado por tantos outros ou um eterno incompreendido: a biografia de Garrincha não esclarece estas nuances, nem este é o seu objetivo. Ela documenta a decadência que o álcool causa num indivíduo: a "estrela solitária" do título não é uma referência ao Botafogo, clube onde ele fez história, mas a um estado de espírito que até mesmo alguém tão especial e "estelar" como Garrincha chegou após não conseguir driblar o marcador implacável da dependência alcoólica.