Arsenio Meira 23/12/2013
Pra você também, Rubem
Rubem Fonseca é o pai - na literatura brasileira - do estilo enxuto, direto, comunicativo, voltado para o submundo carioca, apropriando-se não apenas de suas histórias e tragédias, mas, também, de um coloquialismo que este "Feliz Ano Novo' corrobora e consolida como inovador, sobretudo pelo seu particular realismo cru e cruel.
É um mundo brutal, que começou literariamente a ser tecido por Fonseca em 1963, quando do lançamento do seu livro de estreia, "Os prisioneiros". Para mim, há indícios claríssimos da influência do neorrealismo americano de Truman Capote e nas teias da ficção policial, percebe-se a presença de Dashiel Hammett, pois Rubem destacou-se, tematicamente, pelas descrições e recriações da violência social entre prostitutas, bandidos, policiais corruptos, mendigos. Seu universo preferencial sempre foi o da realidade marginal, por onde perambula o delinquente da grande cidade, mas sem perder de vista a dimensão mais sombria da alta sociedade.
O conto Feliz Ano Novo não apenas dá nome ao livro como o abre como se fosse um tiro de doze ecoando aterrorizante. É um chute arrombando a porta que nos impede enxergar a podridão do mundo, a lama onde nós também estamos enfiados.
A selvageria evidenciada através da violência gratuita, do matar por matar, mostra que aquele não é um simples assalto, mas os primórdios de uma revolução. Não querem apenas nosso dinheiro e nossas jóias, querem vingança, demarcando território com merda em nossas camas, estuprando nossas mulheres, matando por diversão. O grande trunfo de "Feliz Ano Novo" é tratar a violência com frieza, naturalidade, como se fosse algo bastante corriqueiro, o que a torna ainda mais cruel, e retira dela a face panfletária.
Só pelo primeiro conto já valeria a publicação do livro, mas ainda há muito de Rubem Fonseca nas páginas que restam. Os outros contos seguem o ritmo, mesmo depois da paulada de Feliz Ano Novo. Uns não decepcionam (Corações Solitários; Agruras de um jovem escritor; O Campeonato), outros pairam soberanos (Abril, no Rio, em 1970; Botando pra quebrar; Nau Catrineta) e alguns surpreendem (Passeio Noturno; Dia dos Namorados; O Outro; O Pedido; Entrevista; 74 Degraus; Intestino Grosso).
Dividido em duas partes, Passeio Noturno fala sobre um homem que, para aliviar o estresse e extravasar a monotonia de sua vida burocrática, passeia de carro procurando pedestres para atropelar. O melhor de Passeio Noturno encontra-se na segunda parte, onde ocorre o encontro deste homem com uma mulher que ele conheceu no trânsito. A partir desta situação, Rubem Fonseca sugere o mistério através das inúmeras possibilidades que existem em torno do desconhecido, algumas delas perigosas.
Isto também é a força motora dos contos Entrevista e O Outro. Porém, nestes o mistério é potencializado, pois o leitor só tem acesso a um dos personagens, ficando exposto a apenas um ponto de vista, enquanto que o outro permanece envolto de mistério. Além disso, em "O Outro" se pode observar o retrato do momento em que vivemos, violência, paranoia com segurança, a nossa vulnerabilidade e alienação.
A história de Dia dos Namorados já seria interessante, mas torna-se ainda melhor por conta da sua montagem. Rubem Fonseca quebra o que poderia ser contado de forma linear, dividindo a história em duas e alternando-as de maneira semelhante.
Pelo mesmo motivo destaco o conto "74 Graus". Aqui o autor mostra habilidade técnica sublime ao compor uma história através de vários personagens, promovendo um rodízio entre eles na narração da história. A alternância dos narradores é dinâmica como um diálogo, mas permite o acesso a informações que vão além da fala e das expressões corporais, chegando ao que fica escondido, implícito no pensamento. Esta técnica é utilizada em Os Sinos da Agonia de Autran Dourado e também se pode observá-la no cinema, em filmes como Cães de Aluguel, Pulp Fiction Tempo de Violência e Jackie Brown do aclamado diretor Quentin Tarantino.
O livro é fechado por Intestino Grosso, onde Rubem Fonseca cria seu próprio Rubem Fonseca, desnudando um autor que usa a sujeira, a violência, a miséria e escatologia tudo o que há de mais desagradável para compor sua literatura. Intestino Grosso é o posfácio transformado em conto. Ele se expressa justamente através do que as pessoas mais desejam esquecer.