Leila de Carvalho e Gonçalves 27/04/2020
Obra-Prima
?Não existe essa coisa de um livro moral ou imoral. Livros são bem escritos ou mal escritos. E é só.? (Oscar Wilde)
Tendo como cenário a cidade do Rio de Janeiro, Feliz Ano Velho reúne 15 contos de Rubem Fonseca cujo fulcro é a violência urbana. Lançado em 1975, durante a ditadura militar, no ano seguinte ele foi censurado e tirado de circulação sob alegação de apologia à violência e conteúdo contrário à moral e aos bons costumes.Entretanto, o motivo era outro: a literatura bruta de Fonseca conseguia abrir fissuras no tecido social, trazendo à luz uma série de questões que o regime autoritário tentava à todo custo acobertar, pois colocavam em xeque sua eficiência e continuidade.
O título do livro é o mesmo do conto que encabeça a coleção e sem dúvida ele é a cereja do bolo. Em linhas gerais, Feliz Ano Novo aborda a violência como produto de uma sociedade desigual. O conto narra um assalto a mansão de um milionário, orquestrado por três marginais durante uma passagem de ano. Escatológico e macabro, suas últimas páginas têm o efeito de um soco no estômago, capaz de fazer o leitor perder o fôlego.
Outros dois contos também primam pela maneira como abordam o tema. Passeios Noturnos I e II têm como narrador e protagonista um homem de sucesso que, a bordo de seu Jaguar, consegue relaxar do estresse diário, realizando solitários passeios noturnos pelas ruas da cidade e, se o destino é incerto, seu propósito não é. Em síntese, um intrigante estudo sobre a psicopatia.
Já em ?Pedido?, a violência adquire nova roupagem. Ela não gera danos físicos, é fruto da vingança de um homem contra outro, que já foi seu amigo, por conta dos filhos, isto é, enquanto o dele é um Zé-Ninguém; o do outro formou-se em Medicina. Destilando desumanidade, a narrativa é tão brutal quanto as demais.
Quase quinquagenário, o livro surpreende pela atualidade e relevância. Apresentando desde um campeonato de conjunção carnal até a tradição canibalista de uma distinta família, não é por acaso que essa coleção é considerada uma das melhores, senão a melhor, do escritor. Em especial, se você é admirador de Fonseca e sempre reclamou das poucas entrevistas que ele deu ao longo da vida, Intestino Grosso, o último da relação, é um deleite. A narrativa apresenta a entrevista entre um jornalista e um polêmico escritor e em dez paginas, a ilustre personagem, sempre na defensiva, explica porque escreve, ou melhor, porque escreve como escreve?...
Quanto a edição, ela destaca-se pela inclusão de tres extras que não devem ser deixados para trás. São eles:
* um trecho de O Caso Rubem Fonseca: Violência e Erotismo em Feliz Ano Novo, de Deonísio da Silva
* Contribuição para a Análise do Espaço na Obra de Rubem Fonseca, de António Alçada Baptista
* Caso de Policia, de Sérgio Augusto.
Finalizando, deixo um reparo premonitório do poeta Affonso Romano de Sant?Anna em sua resenha sobre o livro, publicada na edição de 5 de novembro de 1975, na revista Veja. Após inúmeros elogios, ele sentencia: ?Uma leitura superficial desta obra pode tachá-la de erótica e pornográfica.? Deu no que deu...