Luigi.Schinzari 04/02/2021
Sobre Ressurreição de Tolstói:
Dentro do panteão de belíssimas obras -- algumas das maiores já apresentadas ao mundo -- construído por Liev Nikoláievitch Tolstói (1828-1910) ao longo de sua longa e prolífica carreira, Ressurreição, seu último romance, publicado em 1899, tende a ficar apagado em relação a outros livros como sua epopeia Guerra e Paz (1869) e Anna Kariênina (1877), seus dois romances anteriores -- uma injustiça histórica: Ressurreição, por ter sido escrito em um momento da vida em que Tolstói preocupava-se mais com reflexões religiosas e filosóficas -- questões essas muito próprias do autor, tão íntimas e únicas que foram denominadas como tolstoísmo a época, tendo fiéis seguidores de suas crenças -- do que com a literatura em si, acabou por ter a fama de ser um romance extremamente ideologizado, uma mentira, claro: resumir toda a beleza traçada nas páginas de Ressurreição, tão carregada de reflexões sinceras de um autor preocupado com o mundo ao seu entorno, a apenas isso -- um romance ideologizado -- é pecar contra um grande expoente da literatura russa e universal e contra o trabalho de um autor no ápice de seu domínio da prosa e de todos os seus instrumentos.
A história é centrada no nobre Dmítri Ivanovitch Nekhliúdov. Chamado para participar de um júri em que três réus são acusados de envenenamento, reconhece em um destes uma antiga paixão juvenil que, com o tempo, transformou-se em um desfruto carnal passageiro. Katiucha Máslova, antiga empregada das tias de Nekhliúdov, tendo se apaixonado por este, acabou tendo sua vida desgraça depois de engravidar do sobrinho de suas patroas, enveredando para a prostituição e chegando ao ponto encontrado pelo protagonista. Nekhliúdov, percebendo que o estado lamentável atual de Katiucha deve-se a seus atos imaturos e inconsequentes do passado, busca de toda forma redimir-se perante aquela alma desgraça que a antes feliz Katiucha tornara-se. Em meio a sua redenção, Nekhliúdov, encontrando-se com figuras como advogados, diretores carcerários e outros chefes de cargos elevados dentro do sistema prisional, reflete sobre crime, sobre pena, sobre justiça, e culmina tendo sua vida inteira mudada pelos erros de seu passado e pela vida daquela mulher sofrida.
Ressurreição, diferentemente dos outros romances de Tolstói com suas dezenas de personagens e vozes, indo de um lado para o outro em uma profusão infindável de tramas e aconteceres, segue linearmente dois lados de uma linha guia. Pula de Nekhliúdov para Máslova, e vice-versa, sem abrir brechas para outras personagens darem seus pitacos e refletirem seus pensamentos: estamos estreitos a visão nova de mundo de Dmítri, sendo bombardeados com suas percepções ácidas sobre figuras intragáveis a ele, acompanhando o despertar de novas ideias, antes tão turvas que, com o passar da narrativa, começaram a clarear em sua pensativa e conflituosa mente junto a seu pesar perante injustiças e desgraças que ocorrem a luz do dia e, parece a ele, não incomodam a ninguém além dele.
Os ecos de Dostoiévski -- fortes por conta da trama linear e psicológica deste --, tão distinto de Tolstói em todas as outras obras por sua linguagem e suas filosofias acerca da fé e da vida, na obra Ressurreição estendem-se às críticas ao sistema carcerário. Tolstói divide com seu conterrâneo as duras críticas a percepção dura em relação a pena e ao criminoso existente em Escritos da Casa Morta (1862), livro com traços fortes da vida no cárcere siberiano de Dostoiévski. Ambos, tão dissonantes em tantos pontos e até mesmo em suas vidas (é irônico pensar que ambos, os dois maiores autores russos e contemporâneos, nunca trocaram nenhuma palavra e, em vida, até mesmo criticaram um ao outro de forma dura em certos momentos), convergiram em aceitar como o sistema prisional é ineficaz e ilógico.
Em Ressurreição, Tolstói aborda uma realidade próxima a nós: o prisioneiro, por vezes de pequeno potencial ofensivo, como no caso de um preso por furto, acaba saindo ainda pior por conta da realidade e do convívio dentro da prisão, em meio àquele ambiente predatório e intrinsicamente violento. É ilógico, diz ainda, por não haver sentido em o Estado gastar suas despesas com o enclausuramento temporário como resposta a uma ofensa à sociedade -- Nekhliúdov, a certo ponto do romance, fala que a morte ou uma punição física semelhante a Lei de Talião seriam mais justas e eficazes, servindo como exemplo e poupando gastos desnecessários. Mas tais características, isoladas, não refletem o pensamento do autor exposto no livro: é do caráter humano que Tolstói critica tanto a instituição prisão; com o cárcere, tira-se completamente qualquer vínculo do preso com a humanidade e o bestializa, maculando-o de uma forma ou de outra: ou saíra destroçado e sem perspectivas, ou abandonará de vez os traços que separam o homem da racionalidade e irá enveredar para o pior tipo de sujeito, da espécie mais cruel possível. Com isso em mente, Tolstói coloca na mente de Nekhliúdov e reflete ao leitor seus pontos, concorde ou não, com muito embasamento e questionamentos poderosos e contundentes, que, sem dúvidas, no mínimo deixarão o interlocutor com algumas dúvidas a cerca de certas certezas de antes.
Mas, além de todo seu conteúdo mais denso envolvendo as prisões, a existência, a fé e a redenção, Tolstói brinda o leitor com uma narrativa madura, equilibrando com maestria a beleza costumeira de sua prosa sensível e observadora -- em meio a tantas tragédias, existem momentos pontuais de contemplação em que a pena de Tolstói trabalha de seu modo único -- com teses filosóficas, religiosas e políticas.
Diferentemente de suas obras anteriores, o tom ácido de Nekhliúdov sobrepõe-se a perspectivas favoráveis sobre a sociedade ao seu redor -- é claro: Ressurreição é um romance mais crítico -- sem esquecer que Tolstói por si só sempre teceu suas opiniões, seja de forma sutil, seja de modo mais assíduo, em cada uma de suas obras, mesmo as precedentes de seu período mais retraído e voltado para si mesmo -- e, o que o destaca de outras obras, seus alvos são mais claros. Jamais, entretanto, sua verve dogmática retira o espaço cedido para a escrita por si só brilhar. São muitos os momentos catárticos de pura apreciação da essência humana e da nobreza -- a relativa ao caráter e não ao poder monetário ?, tão caras a Tolstói. Além do homem elevado por sua bondade, a fé em Deus e Cristo -- e a fé de Tolstói é muito única e distante dos dogmas católicos russos, tendo o autor sido excomungado pela Igreja Ortodoxa em 1901, fato que dura até hoje -- é motivo de contemplação (quando alcançado pelos meios que o autor acredita serem os corretos) em sua narrativa.
Com esses breves momentos de sentimentos humanos e religiosos nobres ao longo da obra, Tolstói encontra uma vertente nova -- talvez tendo sido utilizada antes apenas em sua A Sonata a Kreutzer (1889) -- ligada a certa vulgaridade necessária para narrar a bestialização que o cárcere a hipocrisia humana causam a certos tipos ao longo da obra. Mas, sendo Tolstói dono de talento único para compor suas obras, jamais deixa a vulgaridade se tornar regra, algo tão comum em autores menos hábeis e cansados; é instrumento, e nada além disso, que, como seus termos sujos, polui a obra e o espírito, causando repulsa e comiseração ao protagonista e ao leitor vislumbrar tais momentos.
Tratar Ressurreição, portanto, como obra menor dentre a gama célebre de trabalhos de Tolstói é incorrer em um crime -- para ficarmos nos temas abordados na obra. -- Trata-se de um texto essencial para compreender o autor como um todo e, espceficimente, o seu crepúsculo, tão incompreendido, muitas vezes, para os entusiastas de sua carreira na literatura. É amplo celeiro de debates mas, como todo bom livro deve ser, não se finda aí, propondo reflexão em meio a narrações de construção ímpar e que exemplificam o porquê de um escritor como Tolstói estar no cânone da literatura mundial. Ressurreição escancara a alma de seu autor -- homem vivido, arrependido de muitos atos de seu passado que se assemelha com o de seu protagonista -- ao passo que o redime perante si próprio assim como acontece na busca de Nekhliúdov por redenção, tanto a dele quanto a de Katiucha. São personagens complexos, construídos com esmero e calma, aliados a uma narrativa ora bela -- e não há autor que mais soube trabalhar o belo do que Tolstói --, ora horrível, propositalmente horrível. Enfim, Ressurreição, sendo o último romance publicado em vida por Tolstói, encerra o ciclo de seu autor como foi ao longo de todos seus vastos anos: brilhante, melancólico, mas, acima de tudo, belo; muito belo.