PorEssasPáginas 08/05/2014
A Cuca Recomenda O Andarilho das Sombras - Por Essas Páginas
O romance O Andarilho das Sombras faz parte da série Tempos de Sangue – da qual já li e resenhei aqui no blog o livroDeuses Esquecidos e o conto Sobre Guerras e Deuses, todos lançados pela Editora Draco. É também o primeiro volume da série (sim, eu comecei ao contrário, lendo o segundo volume antes do primeiro, mas o mais legal é que isso é totalmente possível e não senti nenhum problema por fazê-lo) e o romance de estreia do autor Eduardo Kasse. O autor tem uma predileção por fantasia histórica, e é exatamente isso que vemos aqui nesse seu primeiro livro: uma história densa, fantástica e com uma espantosa fidelidade histórica. ‘Bora lá saber o que achei dela?
Em O Andarilho das Sombras acompanhamos a trajetória de Harold Stonecross em duas épocas de sua vida: a primeira, quando deixou sua família, amedrontado – o pai o desprezava – e começou a peregrinar pela Inglaterra medieval, modestamente, fazendo amigos e inimigos pelo caminho. A segunda época de sua vida foi quando, já vampiro e imortal, Harold fez suas andanças por vários países da Europa, espalhando sangue, morte e lendas, seduzindo mulheres e causando a ruína dos homens. A narrativa é intercalada entre as duas vidas e, em ambas, Harold ainda é, essencialmente, um andarilho, como diz o título do livro.
“Os olhos suplicantes e temerosos da lebre não me saíam da mente. Era estranho nós, homens, escolhermos, definirmos a vida ou a morte desses seres indefesos.”
A história começa quando Harold, já imortal, conhece uma bela jovem, Liádan, pela qual se encanta. Essa é uma das personagens mais brilhantes e surpreendentes do livro – guardem seu nome. Quando ela está já à beira da morte, Harold não resiste e a transforma em uma igual, uma imortal. Mas em certo momento ela segue seu próprio caminho, deixando um Harold desolado e sozinho. Não que isso seja algo eterno… sendo imortal, Harold sempre acaba superando o luto e seguindo em frente, encontrando novos caminhos… e mulheres. Há essa parte no livro bastante sensual, mas não é como os clichês de vampiros (muito menos os vampiros atuais). É mais como Anne Rice, talvez; Harold é um vampiro sedutor, porém impiedoso, e sua sede está sempre acima do restante – na maioria das vezes. Em outras, Harold verdadeiramente se afeiçoa a poucos humanos, suportando a sina que é deixá-los para trás, inevitavelmente, quando sua vida se esgota.
O protagonista foi um personagem que me dividiu, confesso. Em alguns momentos, eu o considerava pomposo e arrogante; em outros, sentia sua dor e me afeiçoava a ele. Acredito que isso demonstra o quanto, acima de tudo, ele é um personagem bem construído, com ambos os lados de luz e trevas, como qualquer um. Em sua vida humana, Harold era mais simplório e humilde, mas já é possível enxergar alguns traços do que ele se tornará. Ele não foi meu personagem preferido, mas é um excelente protagonista. O interessante aqui é notar como o autor delineou bem sua personalidade e a dos demais personagens do livro (e são muitos!), mas mesmo assim, é sempre possível distingui-los e sofrer a perda deles quando esta ocorre.
“E nossos corpos nus se entrelaçaram como o espinheiro e a rosa selvagem.”
Aliás, preciso dizer o quanto apreciei o fato de que, apesar do livro se passar em uma época onde as mulheres eram rebaixadas e desprezadas, o livro demonstra uma grande força feminina. Não posso me estender muito porque seriam spoilers, mas as personagens femininas desse livro, especialmente Liádan, são de arrasar. Elas têm uma importância ímpar, são ricamente construídas e secretamente conduzem os caminhos da obra. Sensacional.
Apesar disso, há uma absurda fidelidade histórica: é possível sentir a veracidade dos fatos e a pesquisa intensa que o autor fez antes e durante a escrita da obra. O cenário é perfeito (mas não há excesso de descrições, o que é um ponto extremamente positivo e que me agradou), você realmente se sente no clima daquela época e naqueles lugares. É completamente imersivo, e isso só foi possível pela habilidade do autor e sua extensa pesquisa sobre o ambiente e a época.
“- Não se irrite senhor Harold – falou Will – É que há muita pressão em mim depois que o velho morreu!
- Então vá cagar para ver se alivia essa pressão – respondi bravo.”
Porém, senti falta, durante todo o livro, do conflito mencionado na sinopse: o jogo de poder entre os deuses. O livro fala muito sobre religião – como o volume posterior da série -, especialmente sobre a transição sangrenta e dolorosa para a religião cristã, cheia de pecados e mazelas, e em como os deuses antigos foram sendo esquecidos, substituídos pelo Deus da cruz. Há sempre essa trama permeando a história, mas ela só é realmente aprofundada e apresentada em toda sua glória bem no final do livro – um final sensacional e surpreendente. Porém, eu gostaria que esse potencial tivesse sido mais bem aproveitado durante o restante do livro. O autor se apega muito aos fatos banais e cotidianos da vida de Harold – seja a humana ou a imortal -, que não deixam de ser interessantes (e muitas vezes hilários! Há muito humor também no livro, um humor autêntico que rouba várias risadas do leitor), mas que, reunidos em vários e vários capítulos, tornam algumas vezes a leitura um pouco arrastada. Senti falta do conflito principal do livro impulsionando o leitor a ler e ler com voracidade os próximos capítulos. Apesar de haver sim conflitos e batalhas durante o livro – há bastante sangue! -, esses conflitos foram tratados como rotineiros, e realmente, era o que eram e o que acontecia na época: bandidinhos de estrada e brigas entre homens orgulhosos. Eles não eram o foco principal do livro e senti a ausência do verdadeiro conflito da história – a disputa dos deuses – descrito de uma maneira que impulsionasse mais fortemente a leitura. Senti-me, por quase todo o livro, extremamente segura, algo que não aconteceu em Deuses Esquecidos, por exemplo.
“Jesus Cristo era lembrado em um momento de dor, em sua cruz de madeira. E a cada sermão, os padres martelavam cada vez mais fundo os pregos da cruz nas almas das pessoas.”
Aqui há que se levar em conta dois fatos, acredito. Primeiro: era o romance de estreia do autor. Já tendo lido seu segundo livro e outros contos que ele escreveu mais tarde, percebi rapidamente a diferença de maturidade de sua escrita comparando-se esse primeiro livro e os demais. E, em um primeiro romance, um autor nem sempre sabe dosar quais cenas devem ou não realmente estarem lá. Às vezes uma cena é ótima, vista separadamente, mas não faz tanto sentido assim no cenário como um todo. Isso é uma coisa que deveria ter sido vista na revisão. Acredito que o revisor pecou um pouco nesse ponto; ele poderia ter cortado e resumido algumas cenas. Também encontrei alguns outros erros de revisão, nada que realmente incomode, mas que passou batido pelo revisor.
Mas e aí? A Cuca Recomenda? Sim! É um romance bem escrito, que retrata fielmente um período histórico e traz um toque fantástico delicioso. Não sou muito de vampiros, mas aprecio os do universo de Tempos de Sangue: eles são os vampiros clássicos, com sede de sangue, sedutores no ponto certo, mas verdadeiramente perigosos (e isso é muito importante). Também é interessante esse mote religioso dos livros, que falam essencialmente das batalhas entre deuses decadentes, que fazem da humanidade – e dos vampiros! – peões em seus jogos sombrios. É uma história inteligente, com um final de tirar o fôlego. Se você curte esse tipo de leitura, recomendo O Andarilho das Sombras. E estou aguardando com curiosidade o final série, o terceiro volume Guerras Eternas, que será lançado pela Draco ainda esse ano.
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