willian.coelho. 30/03/2022
Muito mais complexo do que uma historinha de terror
“Psicopata americano” (1991) é o terceiro e também o mais renomado romance do escritor estadunidense Bret Easton Ellis - que iniciou na carreira bastante cedo, tendo publicado seu primeiro trabalho (“Abaixo de zero”), já um sucesso de vendas, com apenas 21 anos. A obra foi fortemente boicotada, pelo seu conteúdo misógino, racista, homofóbico e mais muitas classificações de teor análogo, por diversos setores da sociedade; reacendeu, todavia, dentro de um campo literário mais “cult”. De fato, talvez essa seja uma das situações mais emblemáticas no que diz respeito à capacidade do leitor de separar o autor da obra (obviamente que não de maneira absoluta). Qualquer indivíduo minimamente desenvolvido é capaz de compreender que um ser humano pode conhecer infindáveis sensações e pensamentos sem necessariamente se identificar com os mesmos. E isso, neste caso, é crucial, pois parte da riqueza do texto - que se encontra fora dele - advém da premissa de que aquele que o lê pondere sobre o comportamento errático (não diria surreal nem descontextualizado) de Patrick Bateman, o protagonista.
De dentro de NY dos anos 80, de uma cultura onde qualquer vontade está submetida ao capital (ascensão das políticas ultraliberais e do individualismo), de um momento histórico em que o bloco soviético (comunismo) está em seus últimos espasmos de vida nas mãos de Gorbachev, o leitor é colocado, em primeira pessoa, dentro da mente de um típico yuppie. Tão representativo, na verdade, que os papéis corriqueiramente se confundem uns com os outros e nesse amálgama todos parecem ser Bateman, ou Evelyn, ou qualquer um dos estereótipos apresentados; as personalidades são tão diluídas, que, em muitos diálogos, não há nenhuma importância em se saber quem está dizendo o quê (o leitor é induzido a nem sequer se importar com a construção das personagens). São todos aficionados por grifes, restaurantes e boates da moda, tecnologia de ponta, apartamentos de luxo em lugares cobiçados de Manhattan, físico escultural, altos cargos, etc; as mulheres - que são réplicas dos homens (tirante a questão da independência, porquanto comumente são filhas sustentadas de pais ricos) - servem de mero objeto de consumo para eles. Certamente, o contexto era propício à coisificação feminina: havia há pouco surgido o pornô em VHS (levando a um “boom” da indústria), reprimido pelo conservadorismo moral americano que foi confrontado pelos hippies.
A narrativa aparenta ser propositalmente cansativa, para transpor apatia, tédio: é um excesso descritivo absurdo na forma de parágrafos de relatos sobre marcas (inclusive das coisas mais banais, como cinzeiros e travessas), refeições (entrada, prato principal, sobremesa, bebidas, etc). Como uma simples história de psicopata, indubitavelmente não funciona, na medida em que sua estrutura textual se opõe à ação (o primeiro assassinato ocorre depois de lidas umas 100 páginas, não há perseguição deliberada). Contudo, igualmente explícitos e minuciosos são os trechos violentos (visceralidade) e pornográficos, o que deve causar repulsa nos mais sensíveis. Os feitos do protagonista são duvidosos, ele definitivamente não merece confiabilidade: tem crises de ansiedade com pensamentos curtos e de consumo (medica-se com Valium - nome comercial à época do diazepam, o fármaco mais consumido nos EUA do fim da década de 60 ao início da de 80 - e Xanax - o alprazolam, benzodiazepínico ainda mais forte que o primeiro); possui indícios de esquizofrenia com episódios delirantes (não mata um malabarista, mas, se fosse mímico, faria-o [?]). A coerência para com a realidade de Bateman vai se desfigurando à medida que o enredo - que é descontínuo (capítulos curtos e quase sem relação) - avança; elementos surrealistas começam a ficar frequentes.
Há uma adaptação de 2000, dirigida pela cineasta Mary Harron, que traz Christian Bale no papel de Patrick. Conquanto a interpretação tenha exagerado levemente no tom satírico (o que pode inclinar a personagem um pouco mais do que deveria para o ridículo), seguramente é o ponto forte do longa: o enfoque nas expressões é incrível, transparece toda a inveja, insânia, ódio e tédio com primazia. Talvez o roteiro careça, também, de gore, pornografia e diálogos discriminativos, ainda que estejam todos lá (nenhuma característica fundamental foi estirpada). Sem dúvida, o que mais falta é aquilo que não é possível transferir do texto para o audiovisual: as constantes ponderações de Bateman sobre cada acontecimento, necessário para alocar o leitor dentro do encéfalo do deturpado protagonista, bem como para exprimir a avalanche apática. Merece destaque a atmosfera onírica: as personagens são sintéticas, robotizadas, a linguagem causa um certo estranhamento deveras competente. A direção de arte é também muito conveniente: são acentuados a verticalidade acinzentada da grande metrópole e a roupagem oitentista; as faixas musicais condizem com o texto original. Entretanto, o filme poderia ser um pouco mais longo, havia muito mais a ser explorado: o capítulo sobre a mãe ou irmão; mais um assassinato (o roteiro tenta contornar a escassez durante a fala com o advogado e as imagens na agenda, que servem como não mais do que referências sutis aos que apreciaram o trabalho do escritor); a continuação do eixo do Luis Carruthers (um colega homossexual apaixonado por Patrick e que ele repudia); o momento em que ele é assaltado por um taxista (uma cena demasiadamente lúdica do livro que casaria muito bem com a satiricidade extra do longa). Ademais, é uma produção altamente astuciosa e complexa, precisa ser vista com bastante atenção aos detalhes e, de preferência, depois de ler a trama originária.
Para finalizar, esta história demanda uma certa maturidade; é certo que muitos leitores navegam por estas páginas apenas para saciar o seu fetichismo mórbido (sim, as pessoas são estranhas, adoram ver um cadáver putrefato ou futricar naquelas peças formolizadas [e fétidas!] das aulas de anatomia). Para isso, há textos inegavelmente melhores que o do B.E.E.: existe toda uma linha comercial editorial (inclusive dentro da Darkside) voltada a atender essa demanda, infalivelmente lucrativa (os consumidores de terror são fervorosos). Além disso, Bateman nem é real, não há personagens para se apegar, torcer ou odiar; no lugar, existe um niilismo focado no ultrassuperficial, algo irracional que se sobrepõe sobre Sartre ou Camus. Que diferença faz uma pessoa ou um cão a mais na Terra, que diferença faz qualquer coisa (?), o protagonista “oblitera” e o planeta continua girando do mesmo jeito, os indivíduos se movendo pelas mesmas coisas. A pornográfia e visceralidade cristalinos enfatizam que não somos mais do que carne e impulsos (não há livre arbítrio, cada sinapse é um movimento de íons, cada atitude um montante de acontecimentos passados e genes herdados). Parece inquestionável o fato de que o escritor apostou no “marketing negativo” (e funcional), visto que é difícil acreditar que uma pessoa de vinte e poucos anos fosse capaz de construir algo tão técnico, pensando em cada nuance (vale salientar que quase tudo aqui é reflexivo, até a estética). No entanto, seja como for, acabou importando um momento e cultura muito peculiar na história norte-americana, que, pela ausência de concorrentes à altura, deve figurar como um clássico. Uma obra com esse estilo, atualmente, sofreria ainda mais resistência do que no passado: hoje, há a patrulha das redes sociais, e eles não querem saber de “ironia”, apenas dos seus “umbigos bem limpos”; se houvesse uma ditadura das minorias, ter-se-ia muito combustível pela conta de Bret.