João Moreno 29/08/2024O pior texto que escrevi em anosLi 'Sobrevivente' em 2015 e foi uma das leituras mais prazerosas que já havia tido. Lembro-me, claramente, de estar lendo dentro de um ônibus e ficar indeciso se desceria no ponto ou não, porque um trecho era fantástico, sensacional.
Apesar de ser um dos meus livros favoritos de todos os tempos, fora a parte do ônibus, eu quase não me lembrava da história: mote, personagens, reviravoltas etc. A única coisa que ainda me lembrava era de certas características que tornam 'Sobrevivente' reconhecível como uma obra de Chuck Palahniuk: a repetição voluntária como característica do autor ou os fatos inúteis que são apresentados a todo o momento, inseridos no cotidiano da vida de seus protagonistas ("se você precisa tirar sangue seco de um colchão, use produto x"). O exemplo foi inventado por mim, agora, mas, se pá, deve ter no livro, assim como vários outros nesse estilo.
Vale acrescentar a essa introdução que eu emprestei a minha edição para meu melhor amigo que, mesmo diante do registro no Skoob, se nega a aceitar que pegou o livro comigo. É esse o contexto que me fez quebrar a principal regra do João em relação à Literatura: "não estrague memórias, não releia livros".
Felizmente, quebrei a regra. Infelizmente, a releitura não trouxe o mesmo prazer e aquela euforia avassaladora da primeira vez. O tema, também, quase oito anos depois, é pesado, o que me deixou com algumas ressalvas em relação a certas passagens.
Mas o que dizer sobre o 'Sobrevivente', um livro caótico até para os padrões palahniukianos? Bom, ao final da leitura, vou tentar catar as pontas soltas e formar um "grande quadro", principal objetivo desse texto:
Tender Branson vai se matar, jogando o avião numa área desabitada qualquer de uma parte qualquer da Austrália (?). Poderia ser um puta spoiler, mas é só o primeiro capítulo do livro, que começa de trás pra frente, com o protagonista afirmando ser o fim, mas que precisa deixar registrado as suas memórias, para que, a caixa-preta do avião - que não é preta mas laranja, descobrimos - possa sobreviver e contar a sua versão dos fatos caóticos os quais Tender esteve envolvido e foi "responsável".
E é a partir desses relatos que descobrimos que Tender foi vítima e é o sobrevivente de uma religião alienante, a Crendice alguma coisa, que criava seus fiéis para odiarem o mundo real. Certamente Palahniuk se inspirou na religião do Jim Jones, a Seita dos Povos, e em James Town: àqueles que nasciam sob a seita existiam para replicar os dogmas da Igreja; os mais velhos permaneciam numa fazenda, mais de 20 mil hectares no Nebraska, enquanto os demais deveriam encarar o mundo real, mas sob a moral da Igreja: não podiam casar, deveriam odiar o sexo e a sua sexualidade e um monte de coisas assim. Deveriam, também, mandar parte de seus salários para a Igreja, e assim permitir que a religião da Crendice continuasse a existir. Enquanto não eram entregues ao mundo odiento e pecaminoso, aprendiam a limpar, costurar, soldar e a servir. É esse o contexto de Branson, gêmeo mais novo que, por três minutos de diferença, foi obrigado a partir, enquanto seu irmão mais velho, o antagonista da história, descobrimos mais tarde, se perpetuava, tendo o máximo de filhos que era possível etc etc.
Só que a Igreja deu errado. Os abusos foram descobertos pelo mundo real e o suicídio coletivo, o "arrebatamento", foi o caminho determinado pela Religião da Crendice a todos os seus fiéis caso os crimes praticados pela religião e os chefes religiosos fossem descobertos.
Tender, mais uma vez, foi um sobrevivente. Seguiu vivendo sua vida, limpando e limpando a casa de pessoas ricas qualquer, até encontrar Fertility, uma mulher com poderes de prever cada detalhe do futuro das pessoas ao redor.
Esse é o plot inicial. Tender Branson é um sobrevivente da Crendice, mas não o único. Misteriosamente, seus irmãos de fé, que se recusaram a praticar a regra do suicídio, começam a aparecer mortos. Quando não resta mais ninguém, Tender se torna uma celebridade, e é aí que o outro plot do livro começa a se desenvolver.
Se na primeira parte há uma crítica a religiões, digamos assim, mais "bizarras", esdrúxulas até, na segunda parte há uma crítica ao consumismo da sociedade capitalista e ao personalismo religioso, característico de diversas seitas que conhecemos e até fazemos parte.
Por meio de seu "agente", de uma indústria capaz de fabricar ídolos, imagens, personalidades e produtos, Tender se transforma, sem nem saber como, na nova celebridade religiosa dos EUA. Aqui também há uma crítica à sociedade americana, ao homem médio, conservador, que acredita no criacionismo como resposta à origem do universo.
Não dá pra falar muita coisa sem cair em spoilers muito evidentes, mas a vida de Tender estará ligada, até o fim, às previsões de Fertility e à sede de vingança de seu irmão-gêmeo, se é que podemos falar em sede de vingança.
Na segunda leitura, as repetições de Palahniuk não caíram tão bem. Sobre os fatos inúteis, o conhecimento sobre esteróides anabolizantes de Palahniuk tornaram o texto muito divertido (Palahniuk certamente usa esteróides anabolizantes, seus bíceps não mentem).
Apesar da moral duvidosa, é impossível não sentir pena ou muitos outros sentimentos pelos três personagens "principais". Talvez esse seja o principal motivo dessas linhas: quero reler esse esboço de resenha/resumo e relembrar da nostalgia que (re)ler os últimos capítulos da obra me trouxe.
E, voltando ao início do texto, para algo que eu só me dei conta agora: no final das contas, ou no início (já que o livro começa de trás pra frente), a caixa-preta-laranja foi A sobrevivente.
[Este texto foi escrito em algum momento de 2023, talvez agosto, quando as coisas eram mais simples e eu podia sair do serviço e ir ao parque, ler um livro pirateado, num leitor digital de livros].