Jr. 21/06/2020
A memória reconstrutora
O que, surpreendentemente, é possível de se concluir a respeito de O Crime do Restaurante Chinês, livro de autoria do renomado historiador paulistano Boris Fausto, para além do registro historiográfico mais evidente feito a partir dessa misteriosa tragédia de 1938, é que se trata de uma rememoração bastante afetiva por parte dele, que vivenciou aquele período, unindo o processo quase arqueológico de estudar um caso tão antigo com suas mais remotas rememorações de criança.
O escritor, então, desempoeira arquivos jurídicos, laudos e matérias jornalísticas acerca do caso, datado em mais de oitenta anos, que casou forte impacto na tenra infância dele, com um gesto semelhante ao de quem abre um álbum de fotos familiar, visto que a remontagem do crime envolve, como anuncia o subtítulo do livro, a reconstituição da São Paulo do futebol, do carnaval, de sua meninice nos anos 30, a cidade ainda em crescimento, que se chocava com crimes dessa natureza – denominados de Grandes Crimes, grafados dessa maneira por sua repercussão superlativa –, testemunhados pelos seus habitantes hoje com maior frequência e sem maiores espantos.
Há uma afetividade muito peculiar que envolve esse processo de recordação de um lugar perdido no tempo, ressaltada nos melhores capítulos do livro, que assumem certo tom de história oral, sem, contudo, perder de vista a objetividade e contundência que distinguem esse trabalho de pesquisa de Boris Fausto. Esse sentimento, que não necessariamente é de nostalgia por si, mas tem alguma afeição em seu memorialismo – talvez de quando os crimes da grande cidade eram mais raros e espaçados, e a cobertura midiática da época conferia ao registro policial uma envolvente camada de folhetim –, atravessa a narrativa, que também se nutre de arquivos fotográficos, matérias e relatos transcritos daquele momento, e envolve o leitor mesmo nos momentos cuja descrição quase prolixa do processo jurídico chega a ser um tanto maçante.
Isso é o que há de mais interessante nesse trabalho de Boris Fausto, o vínculo que ele estabelece entre a própria história de vida/memória pessoal com esse crime de 1938 e o painel social de São Paulo naqueles idos finais da década, evocando nessa mistura entre investigação histórica e observação humana e afetiva dos acontecimentos uma sensação curiosa no leitor de estar acompanhando os desdobramentos de um caso criminal a partir dos classificados de uma antiga banca de jornais.
“Na minha memória, não ficaram apenas as imagens do último carnaval, do mistério sem rosto da morte de minha mãe. Ficaram também as imagens do crime do restaurante chinês, na versão em que Arias de Oliveira era considerado o autor da chacina” (pag. 217)