Alan Santiago 22/12/2009
Uma carta para Moravia
Adriana e seus belos olhos e sua bela boca e suas belas pernas percorrem uma trajetória em que as paredes de seu quarto, os lençóis de sua cama talvez sejam testemunhas de uma vida, mais do que baseada na luxúria de sua profissão, nos sonhos simples de sua mocidade. É assim o romance do grande Moravia, que criou a doce e apaixonante Adriana, um tipo aparentemente comum de uma Roma dos idos do fascismo, em que a polícia política concentrava esforços contra os que atentavam contra o regime e, nas delegacias, se entrava e saía com aquele cumprimento característico – como é bem representado quando Adriana procura o amado Mino que está preso, mas isso é conversa para daqui a alguns parágrafos. Por enquanto, ainda estamos no clima quase idílico do início do romance, onde Adriana é apenas uma jovem bela e sonha em casar-se e ter filhos. O oposto do que sua mãe pensa para seu futuro. Logo isso será um embate vigoroso entre as duas.
A mãe levava Adriana para posar para pintores e a vendia como quem vende animal, tirando-lhe a roupa e apresentando suas qualidades físicas. Isso formou uma faceta luxuriosa de sua personalidade que, ainda naquele tempo, sonhava em jantar sopa com filhos e marido ao redor da mesa, felizes, como viu certa vez numa casinha humilde da cidade num de seus passeios com a mãe. Mas nas palavras da matriarca, intransigentes enquanto ainda tinha o domínio sobre a filha, a beleza de Adriana poderia levá-la a conseguir muito dinheiro, um marido rico, bem nascido, de família de posses. E tudo pareceu ser destruído no momento em que a moça anunciou, ao chegar à noite, que estava noiva. E noiva de um chofer, Gino, motorista de uma madame riquíssima, moradora de uma vila, que é como são chamados certos palacetes na Itália.
Embalada pelas promessas de casamento, Adriana entrega-se a Gino como acreditava não poder entregar-se a mais ninguém. A convicção durou até o dia em que surge a figura do importantíssimo Stefano Astarita, um figurão da polícia fascista, que está morto de amores por ela. Contra sua vontade, Adriana é levada para um passeio e é chantageada por Astarita. Para não perder o noivo, ela vê-se obrigada a fazer sexo com o inescrupuloso sujeito; e para afastá-la do futuro marido, a quem Adriana cultivava intensa fidelidade, Astarita faz questão de descobrir a vida pregressa de Gino, que tem uma mulher e uma filha – e foi exatamente aí o início da derrocada de nossa personagem. Em 1947, as cenas escandalizaram a Igreja e o Governo, e o romance acabou proibido no país; entrou no Index Librorum Prohibitorum do Santo Ofício e católico nenhum poderia sequer folhear as páginas escritas por aquele italiano de ascendência judaico-cristã. La Romana, o título original do livro, traduzido rigorosamente como A Romana para o português por Marina Colassanti, só não foi queimado porque Moravia não nasceu no século XVI senão, talvez ele próprio tivesse sido, junto com seus livros.
Adriana é mais do que uma sensibilíssima análise de uma sociedade, calcada no dinheiro e no sexo. Na verdade, a personagem é o exemplar de uma espécime em franca extinção: a sua profundidade está escondida atrás daquela couraça simples, de seus modos pouco educados e de sua leitura deficiente; cozida em linhas e agulhas literárias de mestre, ela é um personagem do qual não se esquece. Ninguém esquece uma mulher como Isadora. Ninguém esquece também uma mulher como Adriana, viva, intensa, que passa a ter uma relação quase lacônica com a mãe, recebendo os homens em seu quarto de móveis novos, comprados para o casamento fracassado com Gino. Ainda assim, ela resiste, com o prazer que o dinheiro lhe proporciona e com o excesso de afeto que lhe transborda. Ela começou a dar-se por dinheiro devido ao seu destino sofrido, de seu caso amoroso infrutífero, mas não resistiu nele pelo mesmo motivo. É que nossa personagem sempre foi voluptuosa, a síntese de uma sociedade, massacrada pelas agruras da desigualdade e movida por aquele binômio, capital-sexo, cada vez mais forte.
O livro em primeira pessoa, contando as aventuras da Romana, instituiu uma visão de literatura, uma assinatura pessoal de Alberto Moravia, que nasceu Alberto Pincherle e morreu há exatos 19 anos. Imprimiu no texto uma maneira particular de criação de personagens. Os pensamentos de nossa moça pobre e suburbana não precisam se esquivar de bom vocabulário, de correção gramatical. Estão centrados, antes disso, num modo de se organizar muito compatível com a postura bastante singela, em alguns momentos leve, diante dos fatos que Adriana adota, e isso produz nas várias páginas dessa história a sensação de que estamos descobrindo a figura de um ser humano tão complexo e tão simples quanto qualquer um de nós, ao mesmo tempo, pode ser.
E é aqui que Moravia mostra seu apurado senso de observação. Não adianta o leitor, afagado com certas literatices recorrentes e convenientes, tentar procurá-las nesse volume. Não há adjetivos em vão, suas comparações e metáforas adquirem um valor poético muito forte por serem intensa e principalmente verdadeiras e espontâneas. Sobre os personagens, Adriana emite opiniões e considerações porque fala distanciada, pelo tempo que passou, pelo afeto que já deixou de existir, em alguns casos nunca existiu ou mesmo ainda existe. Ela narra como os personagens de sua vida acabaram envolvidos através das teias da mesma trama: o amor de Adriana por Gino e depois por Mino, o estudante revolucionário anti-fascista; a falta de sentimentos em relação a Astarita, que sempre pareceu perturbado perto dela; o inebriante Sonzogno e sua violência alucinante. São marcas de um tecido urdido com as mágicas da boa literatura que fizeram Adriana amar desesperadamente o estudante a ponto de usar-se de Astarita para tentar libertá-lo da prisão, uma ação arriscadíssima já que Giacomo, o nome verdadeiro de Mino, era de uma organização que pregava o fim do Regime.
A Roma suja e fria da capa das edições da Editora Abril, na série Grandes Sucessos, contrasta com a capacidade que Adriana tem de continuar a viver apesar de tudo – o final trágico pode ser até um elemento previsível, mas não estraga o romance. Este livro de Moravia, depois de mais 60 anos de sua publicação, continua sendo uma carta aberta: rendendo loas à vida, às delícias e aos sofrimentos de ser quem se é, enfim, à incrível, insuperável e eterna esperança que é viver.