Bruno Oliveira 15/01/2015Tensões entre indivíduo e civilizaçãoTem pelo menos três anos que comprei um box com a trilogia de Asimov – Fundação, Fundação e Império e Segunda Fundação – e a abandonei numa estante. Era uma caixinha preta linda feita para ser uma armadilha para leitores tolos como eu, ávidos por adquirir bem mais do que poderiam ler, sendo que ao finalmente tomar os livros para ler, mês passado, eles estavam cobertos por uma triste camada de poeira que me fez sentir alguma culpa pela demora. Apesar disso, não direi que me arrependo desse tardar, afinal, ganhei com outras leituras, mas apenas que após os ter lido fiquei feliz pela aquisição. No fim das contas, conheci uma obra de grande qualidade.
Falando de maneira ampla, a trilogia fundação compõe um conjunto de bons livros que, através de conceitos inteligentes e trama interessante, apresentam uma ótima discussão a respeito dos indivíduos dentro dos rumos da história.
Por conta de sua narrativa singularíssima, ao compor esta resenha busquei mais explicitar o funcionamento dos livros a partir de seus conceitos básicos do que descrever seu enredo e desenvolvimento, quer dizer, tentei mostrar por que o autor escreve da maneira como escreve, por que seus personagens são da maneira como são e assim por diante, mais que contar a história existente nos livros. Vejamos no que isso vai dar.
Uma história da civilização
A história consiste no seguinte: num mundo futurista em que há um império galático comandando todo o cosmo, Hari Seldon desenvolve uma ciência – a psico-história – capaz de prever com grande precisão os desenvolvimentos civilizacionais futuros. Por meio dela ele prevê a extinção desse império e um subsequente período de barbárie, no entanto, prevê também a possibilidade da diminuição da duração da barbárie por meio da construção da Fundação, uma instituição científica que teria como fim preservar o conhecimento humano para mais tarde criar um novo império mais forte que o anterior. A trama se passa entre a formulação do plano de Seldon até sua maior crise, séculos mais tarde, e não ficamos sabendo se ele foi concluído com sucesso ou não, somente o desfecho da crise.
Seria possível narrar tal história de diversas maneiras e essas possibilidades me fazem reconhecer que Asimov escolheu, talvez, uma das mais curiosas dentre elas: narrar a partir dos próprios conceitos psico-históricos apresentados nos livros e mobilizar os agentes da história a partir deles. Como? Bem...
Para começar, a psico-história é uma ciência de grandes populações, ela é incapaz de prever o comportamento dos indivíduos, por isso, uma narrativa baseada nela atribui maior importância às épocas e menor importância ao desenvolvimento dos personagens. No mais das vezes os indivíduos não são cruciais como agentes de suas circunstâncias particulares, mas como participantes de um panorama histórico que é, ele mesmo, o protagonista da trilogia. Nesse sentido, a trama jamais se desenvolve a fim de explorar as relações entre os personagens (sejam de amor ou de ódio), mas sempre em direção a uma resolução das ações transcorrentes dentro desse panorama.
Até certo ponto eles acabam representando forças históricas e os conflitos e choques da civilização, sendo substituídos em poucas páginas por novos personagens e novas circunstâncias que expõem o desenvolvimento do plano histórico, entretanto, isso nem sempre é bom: por vezes eles parecem ratos presos num imenso experimento secular, diferindo entre si apenas pelo labirinto em que se encontram.
O papel da individualidade dentro disso tudo é um dos grandes fantasmas que atormenta os personagens e o grande tema dos livros. Afinal, uns poucos indivíduos podem alterar o rumo da história? Temos algum controle dos descaminhos da humanidade? Parece simples dizer que sim, entretanto, é igualmente simples problematizar uma resposta romântica e repensar se somos ou não tão importantes no curso das coisas. Creio que a trilogia não tem uma resposta unívoca a esse respeito, pois embora os livros tendam a se voltar mais para a individualidade conforme avançam, eles jamais abandonam o panorama histórico que determina o que acontecerá à todos a despeito das ações dos indivíduos. Sinceramente, não sei o que concluir.
Uma narrativa conceitual
A escrita de Asimov é simples e direta, sem qualquer construção sutil de linguagem ou aprofundamento psicológico dos personagens. Quase não há rememorações ou perfis a serem traçados, pois importam as ações e as falas. Os acontecimentos são apresentados de maneira objetiva e, embora o tempo verbal mais utilizado seja o pretérito perfeito, a narrativa é conduzida de maneira a causar uma sensação de simultaneidade entre leitura e ação, como se o leitor estivesse assistindo tudo transcorrer no exato momento em que lê. Funciona muito bem, por sinal.
Já a técnica narrativa é uma só: em cada sessão do livro é estabelecida uma situação problemática que contextualiza as ações dos personagens. Eles devem solucioná-la parcialmente ou totalmente para que surjam novas situações, novos personagens e assim por diante, sendo essa solução sempre baseada em inteligência. Os livros transcorrem como uma grande diálogo em que os acontecimentos tem por base raciocínios e argumentos que os explicam. Tudo flui como uma espécie de exercício de convencimento em que somos levados a perceber as implicações de cada situação, bem como às astuciosas soluções propostas para elas.
Como diria um personagem de Duna (aliás, outra grande obra de ficção): “são planos dentro de planos, dentro de planos”.
Ciência, religião e religião científica
Diferentemente do que se poderia pensar, os conceitos da trilogia estão bem mais próximos das ciências humanas que das ciências, sendo aqueles mais importantes os conceitos de controle religioso das massas e de dependência tecnológica.
Fundação-e-ImpérioAmbos são apresentados por meio de uma "religião científica" criada pela Fundação com o objetivo de exercer controle social sobre alguns planetas. Ela age de duas maneiras: primeiramente, mascarando a ciência da Fundação com conteúdos teológicos, transformando os frutos dessa ciência em feitos “miraculosos” aos olhos das massas, além disso, oferecendo suporte tecnológico em troca da permissão para a instalação de templos dentro desses planetas.
A barganha é bastante atrativa: o planeta ganha novas tecnologias e em troca permite a instalação de alguns templos em seu território. Os sacerdotes da religião passam a integrar efetivamente essas sociedades, pois não são uma força maquiavélica esperando ser posta em ação, mas pessoas treinadas para crerem nessa superstição tanto quanto seus fiéis.
O resultado disso é a manipulação dos interesses da população em favor dos interesses da fundação, na medida em que as massas passam a adotar a religião que tem sua origem e sua diretriz na Fundação, porém, igualmente, o surgimento de uma dependência tecnológica desses planetas em relação à Fundação, na medida em que eles recebem uma tecnologia mediada pela teologia.
Um balanço da trilogia
Pessoalmente, gostei bastante da trilogia. Ela contém ideias bem inteligentes e um bom ritmo que faz com que os livros possam ser lidos rapidamente e consecutivamente sem tédio.
A escrita de Asimov tem limitações notáveis, é verdade, ele é mais um bom escritor que um bom literato, eu diria, mas seus livros contém boas histórias que facilmente justificam sua leitura sem que precisem ser artísticos à náusea.
Entreter com inteligência é coisa rara e preciosa por si só. Ao bom leitor basta.
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aoinvesdoinverso.wordpress.com