Carlos Nunes 16/04/2024
A questão crucial da peça é o embate religioso entre o Zé do Burro e o padre, entre um fiel extremamente devoto mas simplório, que não entende onde foi que errou e o representante oficial da Igreja, intransigente e autoritário, que se recusa terminantemente a aceitar qualquer coisa que venha de fora dela. O Zé do Burro passa a ser usado pelos vários grupos em prol de seus próprios interesses: os praticantes de candomblé querem usá-lo como líder contra a discriminação que sofrem da Igreja Católica, a imprensa sensacionalista começa a espalhar a história de que o que o Zé quer na realidade é ser visto como um novo Messias e que seu desejo é promover a reforma agrária, dividindo a sua terra entre os camponeses mais pobres, o tumulto está formado até a chegada da Polícia, chamada para colocar ordem na casa.
São várias pessoas que representam os poderes constituídos, religioso, social, econômico, político, que expõem com clareza que o Estado, ao invés de de cumprir o seu papel de promover o bem-estar da população, especialmente dos mais pobres, acaba utilizando os recursos de que dispõe para distorcer a realidade e oprimir ainda mais essas classes trabalhadoras, se distanciando cada vez mais dos interesses do povo. Não podemos esquecer que o Dias Gomes era comunista, e isso foi às vésperas da instituição da ditadura aqui no Brasil, e quando os militares tomaram o poder, alguns anos depois, claro que ele já estava na mira. Mas, independentemente de ideais políticos, o texto dessa peça é não só uma crítica, mas também, por conta dessa inserção de personagens que ilustram vários segmentos sociais, é um retrato muito fiel da realidade social da época, mostrando esse conflito entre a religiosidade popular e o dogmatismo da Igreja, mas também as enormes diferenças entre o Brasil rural e o urbano.
Um outro ponto mostrado aqui na peça é a condição da mulher. A Rosa é aquela mulher ingênua e submissa, que não questiona as decisões do marido, e que estará a seu lado em qualquer situação. Mas, ao chegar à cidade, totalmente esgotada, cai na lábia do Bonitão e acaba, mesmo contra a sua vontade, aceitando o convite para dormir em um quarto de hotel com ele, com a autorização do Zé, que entende o quanto a esposa está cansada. Enfim, é um livro muito interessante que, apesar do tempo, ainda é muito atual nas discussões que ele traz. E, sendo uma peça, é uma leitura rápida, cerca aí de duas horas, a gente lê numa sentada. Um livro que com certeza quem se arriscar vai gostar porque ele tem muito a dizer ainda hoje.