spoiler visualizarBrujo 12/06/2024
Um Marciano Chamado Smith
Lançado em 1961 e ganhador do Prêmio Hugo no ano seguinte, "Um Estranho Numa Terra Estranha" narra a trajetória de Valentine Michael Smith, um humano filho de astronautas que acabou sendo criado por Marcianos até os 20 e poucos anos (a primeira expedição à Marte acaba em desastre e o pequeno Mike é o único sobrevivente) e depois volta para o nosso planeta (em uma segunda expedição), como um estranho em uma terra estranha. Conforme Mike vai se adaptando e entendendo (ou "grokando") a humanidade, Heinlein utiliza da inocência do "Homem de Marte" para ir sistematicamente apontando a sua metralhadora de sarcasmo na direção dos principais tabus da sociedade: a religião e o sexo, não se privando de fazer também reflexões a respeito de inúmeros outros temas, como política, arte e empatia. Isso posto, esse livro tende a ser uma obra-prima do sci-fi, não é? Bom... Sim e não.
O caso é que nunca senti tantos sentimentos conflitantes após uma leitura. Quando eu disse que Heinlein ataca todos os tabus, nós podemos encaixar nesse ataque também a própria ficção científica e aqui vem o primeiro ponto importante: "Um Estranho Numa Terra Estranha" NÃO é um livro de ficção científica! O estilo do livro me é dificil de classificar, mas podemos dizer que se trata de uma obra de fantasia, satírica e com um pequeno fundo sci-fi (civilizações alienígenas, exploração de outros planetas, carros voadores, etc.). O protagonista, Mike (há controvérsias sobre ele ser mesmo o protagonista, mas eu falarei sobre isso mais à frente), possui poderes espetaculares de telecinesia, telepatia (é quase o Professor Xavier), faz qualquer coisa que "groke" errada desaparecer e pode moldar a sua musculatura. E por quê? Por que sim, ele foi criado em Marte e por isso tem esses dons fantásticos, simples assim (me lembrou dos Changeman, cujos membros tinham habilidades especiais só por terem sido criados em outro planeta). E o primeiro grande problema que enfrentei nessa leitura foi a quebra de expectativa: li dois livros do Heinlein ("Estrela Oculta" e "Tropas Estelares") e imaginei estar diante de outra obra do gênero e não de um manifesto hippie de vida em comunidade, poliamor e - pasmem! - canibalismo. Pois é, Heilein não poupou esforços pra chocar os leitores incautos dos anos 60. E era isso mesmo o que ele pretendia com esse livro e o fez bem até demais, ao ponto de uma quantidade grande de pessoas levarem a sério todas as ideias malucas contidas no livro e criarem NO MUNDO REAL uma "Igreja de Todos os Mundos", a mesma que Mike funda no livro, para desgosto de Heilein, que teve que afirmar até o fim da vida que o que está descrito no livro não é a sua visão ideal de mundo. Seu objetivo com esta obra, segundo ele mesmo afirmava, não era fornecer respostas, mas sim questionamentos, para que o leitor reavaliasse suas próprias crenças, sejam elas quais forem.
Depois de pensar muito sobre esta leitura, percebo que o grande problema com ela foi que Heinlein a utilizou para despejar todas as suas críticas em monólogos interminaveis e prolixos do seu alter ego na história, o Dr. Jubal Harshaw, que chega inclusive a roubar diversas vezes o protagonismo de Mike, que por muitas vezes desaparecia da história, enquanto Jubal estava, por exemplo, demonstrando toda a sua esperteza e experiência driblando a polícia, dobrando uma figura política importante mundialmente à sua vontade ou simplesmente gritando "à frente" para uma de suas lindas secretárias a cada vez que iniciava uma nova peripécia. Confesso que isso quebrou demais a fluidez da leitura. É claro que há reflexões bem interessantes vindas dele, mas penso que Heilein não deveria ter pesado tanto a mão nos monólogos em detrimento da história e do protagonismo do Michael, que é o melhor personagem e tem um arco de evolução bastante interessante, mas não tão bem explorado.
E os problemas não param por aqui: não conseguiria finalizar essa resenha sem falar sobre o quão problemático é o tratamento dado por Heinlein à suas personagens femininas. O autor parece que não se decidiu se queria dar um tratamento respeitoso à elas, lhes dando personalidades marcantes e certos aspectos importantes no desenrolar da história ou simplesmente se render a pensamentos típicos dos anos 50 (e repetidos por muitos até hoje, provando que a evolução é só uma teoria), como quando ele fala à alguma de suas secretárias para se calar pois "aquele não era um momento onde as mulheres tinham direito a voto". O ápice foi a fala da personagem Jill Boardman sobre violência contra as mulheres ... Inadmissível ter saido da boca de uma personagem, sendo ou não uma sátira.
Mas nem tudo é negativo, eu gostei de um bocado de coisas deste livro: o já citado arco de evolução do Michael; a construção da figura dos Marcianos, principalmente dos Anciãos e suas formas desencarnadas e da forma de vida do povo de Marte; a relação de pai e filho entre Jubal e Mike, que vai evoluindo e chega ao ápice nos trechos finais do livro, que precedem a morte do Homem de Marte de forma apoteótica (bonita e gore ao mesmo tempo, fazendo referência evidente à morte de Cristo).
Enfim, no final das contas não me arrependi de ter lido "Um Estranho Numa Terra Estranha" pois, independente de suas falhas, foi bastante importante e moldou a vida de uma galera nos anos 70. E, se tem algo que vai ficar comigo depois que o livro voltar para a estante, é o seu poder de causar reflexões. E, não é para isso mesmo que os livros servem, para nos fazer pensar? Neste ponto, temos que admitir que Heinlein foi extremamente bem sucedido!
PS: Quero deixar aqui registrado meus sinceros agradecimentos ao meu querido amigo aqui do Skoob, o Rogério, que me pontuou sobre algumas coisas que quase passaram despercebidas durante a leitura!
TS:
The Police: Outlandos d'Amour (1978), Reggata de Blanc (1979), Zenyattà Mondatta (1980) e Ghost in the Machine (1981).