Benigno_Lê 08/11/2024
Esse livro é mais fácil de ler e mais divertido do que eu esperava. Mais para o fim ele fica um tanto cansativo, dado que trata de temas como justiça e injustiça, bem e mal, sob uma óptica muito idealista (afinal é o Platão sksksksk). Uma leitura diferente, que mostra as visões de uma pessoa que viveu a cerca de 2400 anos atrás!
Sócrates, o personagem que narra a história, se encontra com amigos e eles discutem sobre a natureza da justiça e do homem justo. Antes disso, Sócrates conversa com um homem mais velho que relata que conforme se envelhece, as pessoas se preocupam com a veracidade das histórias sobre o além-túmulo, sobre o Hades, mas apenas aqueles que acreditam que realizaram atos ruins. É muito interessante ler os personagens dizem trechos como: "Por Zeus!", "um deus", "a deusa", "o Hades", pois para nós, atualmente, são trechos sobre uma mitologia antiga que virou tema de livros de ficção, desde A divina comédia até os livros de Rick Riordan. As frases nos fazem lembrar que essa coletânea de mitos e ideias formavam uma religião importante para a região naquela época.
Os diálogos mostram o método socrático com clareza (que foi explicitamente criticado por um dos personagens, a saber Trasímaco, que disse que Sócrates se limita a fazer perguntas ao interlocutor sobre algo, pois é mais fácil que afirmar e definir conceitos), Sócrates escuta seu interlocutor, parafraseia algumas de suas ideias e concordam juntos com um conjunto de premissas. Em seguida, Sócrates faz diversas indagações para seu interlocutor, que uma vez concordando com elas, segue a linha de raciocínio de Sócrates até chegar em sua conclusão final, que pode, ou não, refutar alguma premissa inicial. Sócrates parece só conseguir discutir através de silogismos, muito interessante. Válido destacar que o método é discursivo, isto é, não investigativo ou científico, portanto as conclusões são obtidas por ideias que são tomadas por verdadeiras, muitas vezes o valor de verdade de tais ideias é assumido quase que por obviedade, mas ainda é um método eficiente de raciocínio lógico, o silogismo é um método dedutivo do qual apenas se pode obter conclusões verdadeiras.
Ao debater sobre a justiça, os personagens misturam conceitos como o belo e o bom, isto é, a discussão é recheada de juízos de valor sobre o que se discute, e não sem motivo, pois, acredito, ao discutir esses temas as visões pessoais são o que dita as definições e ideias correlacionadas. Acho interessante que alguns trechos do livro sobre essas discussões soam muito parecidos com análises e reflexões sobre teoria dos jogos, por exemplo trechos que discutem sobre as vantagens de atos justos e injustos para quem os pratica, sobre ganhos imediatos e ganhos de reputação.
Ainda discutindo sobre justiça, Sócrates propõe debater sobre a criação do Estado para falar, antes da justiça das pessoas, sobre a justiça do Estado. Novamente, a deliberação não é uma análise histórica, mas sim uma discussão idealizada, mas o objetivo das discussões não é científico, mas sim filosófico. É possível dessas análises criar hipóteses sobre o nascimento do Estado das cidades gregas, sobre a organização do trabalho, sobre a vida em sociedade, essa é uma parte importante da construção do conhecimento, mas não é possível afirmar como essas coisas se dão sem uma análise concreta da realidade. Não vou discutir muito sobre isso, pois, afinal, o livro é de milênios atrás e foi escrito pelo símbolo do idealismo: Platão.
Sócrates debate então sobre a educação dos guerreiros (às vezes ele inclui a educação das crianças). As histórias que se deve contar para eles deve retratar os deuses de uma maneira específica e não como eram retratados na literatura e fábulas da época. Por exemplo, Sócrates argumentava que os deuses deveriam ser a imagem em que os guerreiros deveriam se inspirar, portanto eles não poderiam ser tratados como ruins (tirando a humanidade dos deuses gregos), não deveriam ser capazes de mentir ou enganar; vagarosamente Sócrates idealiza ainda mais os deuses a fim de aproximá-los da perfeição e benevolência, e, se perfeitos, imutáveis. Aqui parecem surgir algumas das raízes da filosofia cristã da natureza de deus.
Ainda sobre a educação dos guerreiros, Sócrates defende um tipo de censura para com contos, poemas e outros produtos da cultura. Pois, para a boa educação dos guerreiros, ele argumenta que estes devem ser educados através de histórias com personagens corajosos, sem defeitos, que não demonstrassem nenhuma fraqueza ou dúvida, mas que fossem sensíveis para orar para os deuses, ou ouvir preces. Como a educação, segundo Sócrates, se baseia na música e na ginástica, me parece que uma educa a alma e a outra o corpo, tanto uma quanto a outra deveriam ser ensinadas de forma a promover a temperança nos defensores da sociedade. As músicas deveriam ser estimulantes e energéticas, portanto deveriam ser suprimidas as músicas tristes, deprimentes. De forma semelhante, a educação do corpo deveria promover a temperança, de modo que os guerreiros fossem fortes e tementes mais à escravidão que à morte, mas que não fossem brutos e rudes.
Sócrates debate com colegas sobre a natureza da medicina em vários momentos. Segundo ele, alma é fator determinante para a saúde, portanto alguém com uma má alma não seria capaz de ter um bom corpo, uma boa saúde, de modo que a medicina não deveria tentar tratar os indivíduos de saúde demasiado fraca, pois esses teriam uma alma ruim, portanto deveriam ser eliminados, suprimidos. Desse modo, Sócrates (ou Platão) mostra a sua defesa à eugenia. Válido destacar que pensamentos semelhantes existem até hoje e são perigosíssimos, pois tomam alguma característica arbitrária de alguém como culpa dela, ou simplesmente imutável, de modo que essa pessoa deveria ser desprezada ou eliminada. Quem determina essas características? Como elas são provadas de indicarem algo ruim ou incurável? Por conta desse idealismo preconceituoso desses discursos que eles são tão perigosos, ainda mais quando sua fonte, aquilo que sustenta e valida suas ideias está sempre certo e não pode ser questionado: deus.
Mais adiante, a fim de definir a justiça no âmbito dos indivíduos, Sócrates continua a debater sobre a justiça do Estado. Ele define as três classes do mesmo: governantes, guerreiros e demais pessoas e a essas classes associa qualidades desejadas. Os governantes deveriam ser sábios, os guerreiros corajosos, todos deveriam ter temperança e cumprir seu papel, sem tentar mudá-lo, essa última seria então a justiça. Nessa discussão, percebo duas coisas principais. Primeiro: as ideias das pessoas são moldadas pela sua realidade. Se a sociedade possui tal configuração, divisão social, ao imaginar o Estado ideal, Sócrates (Platão) replica a sociedade que teve contato com algumas diferenças que julga como melhorias. Ao imaginar sua utopia, ele preserva várias propriedades da realidade, pois ela molda sua maneira de ver o mundo. Por exemplo, quando descobrimos as máquinas a vapor, imaginávamos que o universo era uma máquina determinística e bem montada, quando criamos os computadores começamos a cogitar a possibilidade de vivermos em uma simulação, a imaginação gravita em torno da realidade. Segundo: os discursos de Sócrates se baseiam no senso comum para sustentar suas ideias, muitas vezes recorrendo quase que a tautologias, ou argumentos quase circulares, para sustentar suas visões, algo como, se alguém é justo, ele está com a justiça. Se alguém é bom, ele é justo, pois ser justo é bom. Esse tipo de discurso é muito superficial e não discute de fato como funciona a realidade, toma-se apenas ideias que a maioria concordaria, por exemplo: os que governam deveriam ser bons, portanto é bom que eles o sejam. Além de decidir qualidades arbitrárias como propriedades fundamentais do Estado e das pessoas, como justiça e temperança. Novamente, são apenas qualidades que a maioria concordaria que são boas de se ter uma pessoa ou um Estado, de modo que discordar de Sócrates nisso é improvável. Nada impediria de adicionar outras outras qualidades e associar, por exemplo, apenas aos governantes e guerreiros, ou apenas aos demais indivíduos do Estado. (Talvez eu esteja exigindo muito de uma teoria idealista e utópica de mais de dois milênios de idade). Fiquei triste de Platão debater todos esses temas, tangenciando a parábola da biga, que eu estava esperando para poder relembrar do meu ensino médio, em que li sobre isso no livro de filosofia, mas não mencionar. De fato a parábola não se encontra nesse livro.
Platão continua a relatar como deveria ser sua sociedade de guerreiros. Ele argumenta que estes deveriam não ter posses, deveriam conviver em conjunto. Sócrates e seus interlocutores discutem também o papel das mulheres e a contradição que cairiam se, ao afirmar que pessoas de naturezas diferentes deveriam ter funções diferentes, dissessem que as mulheres deveriam de ocupar as mesmas funções que os homens. Para escapar da contradição, Sócrates afirma que, mesmo sendo inferiores (e seu interlocutor confirma sem questionar), não lhes parece que as mulheres possuam alguma dificuldade em realizar qualquer tarefa quando comparadas aos homens, apesar de inclinações para certas tarefas. Apesar disso, se as mulheres possuem as mesmas aptidões para se dedicarem as funções do Estado, em que seriam inferiores? Platão não responde. Na casta de guerreiros, o autor argumenta que aqueles deveriam passar por um processo eugênico de procriação, onde aos melhores guerreiros seriam designadas as melhores guerreiras, e aos piores as piores, mas isso não poderia ser explicitamente dito, aqueles que são piores deveriam acreditar que os melhores têm relações sexuais com os demais melhores por sorte e competência. Além disso, as crianças deveriam ser criadas em conjunto, sem conhecer seus pais, todos deveriam ser vistos como parte da família. Platão também defende que os gregos de diferentes Estados deveriam respeitar seus conterrâneos e tentar reconciliarem-se sempre uns com os outros. Após essas deliberações, Platão discute que o Estado ideal deveria ser regido por filósofos, isto é, amantes do conhecimento, e os demais deveriam apenas seguir as suas ordens. No idealismo platônico, o Estado deveria ser regido por aqueles que buscam a verdade e tentam compreender as coisas. É interessante como o idealismo é suficiente, a utopia é um modelo inatingível que é válido por poder ser descrito, não por poder ser executado; o autor defende esse ideia ao dizer que uma escultura de um corpo ideal não é ruim por mostrar um corpo impossível.
O autor defende também a presença do "verdadeiro" filósofo na governança do Estado. Ele critica a visão das pessoas contra o filósofo, como se aquele que busca a verdade fosse um inútil. A discussão dele é um pouco diferente da discussão atual que está correlacionada com a visão utilitarista (e muito influenciada pelo capitalismo) contemporânea, mas alguns temas se mantiveram. Aquele que de fato ama o conhecimento, segundo Platão, tem poucos desejos mundanos e deve não ser influenciado contra essa natureza; esse amor pelo conhecimento estaria atrelado ao amor ao belo, que está também associado ao justo e ao bom, logo o filósofo verdadeiro teria todas essas qualidades; o filósofo deveria querer buscar a verdade, de modo que seria julgado por outros que exigissem ações imediatas para a resolução de problemas. Além disso, como os filósofos verdadeiros são raros (não se baseiam em opiniões ou se moldam conforme o público que os ouve como os sofistas), o povo não poderia ser majoritariamente filósofo, então, para Platão, a democracia seria um absurdo.
Ele disse! Ele descreveu a alegoria da caverna!!! Platão nessa parte do livro deixa claro o motivo de ser o símbolo do idealismo. Platão faz uma ode à aritmética e geometria por serem artes do ser imutável; para o autor, a lógica bem estruturada da matemática e sua desconexão com a realidade a tornava pura e perfeita, conectando-a às artes que visavam entender aquilo que não muda, como o belo e o bom. É realmente uma síntese de idealismo antigo. Apesar das ideias de Platão se aproximarem de conceitos teológicos, ontológicos a respeito de suas ideias abstratas e desprezarem estudos empíricos, a defesa do aprendizado de temas "inúteis", por falta de aplicação prática imediata, ou até mesmo ausência de qualquer aplicação, me é bastante interessante. O fascínio e curiosidade para com os eventos e fenômenos das coisas, das pessoas, da sociedade, do planeta, do universo existe em todas as crianças, buscar compreender como o mundo ao nosso redor funciona é natural, porém a "vida prática" nos tira o direito de ter essa visão e admiração. Grande culpado é nosso ladrão de tempo, o capitalismo. A visão utilitarista das ações humanas está muito arraigado na visão capitalista do mundo, que deve ser combatida em prol do bem estar das pessoas. Devemos lutar pelo nosso direito de sermos curiosos, de podermos desenvolver nossas paixões e interesses. Aquilo que não gera lucro rápido é visto como inútil; a arte, a ciência de base, as pesquisas e investigações são vistos como inúteis, mas são reflexo das capacidades e interesses humanos de aperfeiçoamento e desejo pessoal, trabalho coletivo. A visão é quase que anti-humana, e é ela que deve ser combatida. É preciso dizer que mesmo pesquisas sérias podem estar cientificamente mal embasadas e serem contraproducentes, mas elas podem muito bem passar pelo escrutínio dos pares e se tornar mais efetiva no entendimento da realidade. Por fim, as pesquisas melhoram as condições de vida das pessoas, desenvolvem a tecnologia da sociedade, ampliam nossos conhecimentos do mundo e, em alguns ramos, são belas expressões de arte.
Na descrição da educação do Estado, Platão descreve as disciplinas que deverão ser ensinadas além da ginástica e música: aritmética, geometria (e geometria espacial, que ele comentar que não se sabia muito sobre na época), astronomia e dialética. Estas disciplinas compõem o Trivium e a dialética é parte do Quadrivium, que eram modelos educacionais da Europa medieval.
Platão descreve os governos de sua época e as transições entre essas formas de governo. Em sua visão, os governos passam da aristocracia para a timocracia, em seguida para a oligarquia, para a democracia e, por fim, para a tirania. Todos os governos e processos de transição são justificados de forma idealista, apenas com a arte do pensar, como o livro todo se baseia. Mas a ideia que está no centro da visão de Platão sobre a sociedade é que ela pode ser descrita em termos dos seus cidadãos, isto é, a oligarquia é formado pelo "homem oligárquico", a democracia é formada pelo "homem democrático", isto é, o governo é um espelho direto de como as pessoas são. É como se Platão tentasse explicar o funcionamento da sociedade através da psicologia. De modo que utiliza algumas visões comuns da época para justificar as ações individuais dos cidadãos que fundamentariam as características e, por fim, levariam à derrocada do sistema governamental.
O autor relata sua visão sobre a arte. Eu lembro de ver esse tema no ensino médio. Por mais que Platão elogiasse o trabalho dos filósofos, ele despreza um tanto o trabalho dos artistas; se o trabalho mais importante é o intelectual voltado para o entendimento da verdade absoluta, do entendimento dos conceitos do mundo das ideias, o artista está o mais longe possível disso, porque o artista gasta seu tempo tentando copiar a realidade, fazendo uma cópia da cópia (objeto, pessoa, ou outra coisa qualquer) da ideia perfeita.
Platão também debate sobre a imortalidade da alma, que ele argumenta ser fácil provar sua imortalidade, pois tudo o que perece o faz por conta de uma doença, um defeito do próprio ser, mas ele não reconhece nenhum defeito na alma, pois, mesmo a injustiça praticada pelos indivíduos não prejudica a vivacidade da alma, justamente porque os injustos não morrem mais cedo, mas sim o contrário. Aqui percebemos como as ideias de Platão influenciaram a filosofia cristã (se não me engano seus trabalhos foram muito importantes para o cristianismo), sua visão da alma perfeita e imortal, sua visão maniqueísta do mundo e a crença na ação dos deuses, em sua visão perfeitos, a favor dos justos e contra os injustos durante a vida e após a morte (queria saber se essa visão era particular de Platão ou se era popular entre os gregos, pois o panteão grego é cheio de deuses quase humanos, com qualidades e defeitos). Interessante o relato descrito ao fim do livro sobre a história de Her, que foi um guerreiro que visitou o Hades, viu as almas serem julgadas, condenadas ou premiadas e voltou a vida para relatar o que vivenciou no além-túmulo. A parte mais interessante é que na história, várias almas escolheram seus destinos para suas reencarnações; algumas escolheram vidas mais simples, outros vidas mais gloriosas, outros escolheram se tornar animais, alguns animais decidiram se tornar gente. Platão, aparentemente, toma o relato como relevante, como se pudesse, de fato, tratar da realidade do Hades.