Pablo Paz 15/10/2024
Depois dele, o senso comum
Depois dele, o senso comum...
‘Mesmo assim, não consigo tirar da cabeça a discrepância que existe entre pensamento e vida. Uma desarticulação permanente, embora tentemos encobrir ambas com um toldo lustroso. E não adianta. As ideias têm de combinar com a ação: se não há sexo, se não há vitalidade nelas, não há ação. As ideias não podem existir sozinhas no vácuo da mente. As ideias estão relacionadas com a vida: ideias hepáticas, ideias renais, ideias intestinais etc.’ (Miller, 2017, p. 224).
Boa parte das resenhas no Skoob sobre este livro o taxam de misógino; isso me lembra J.L. Borges que dizia que uma resenha de um de seus livros cem anos após sua publicação falaria mais sobre os leitores de cem anos após sua publicação do que sobre tal obra publicada cem anos antes.
E é impressionante como nós leitores podemos ser injustos com os livros, ainda que eles nos salvem de muitas crises e agonias. Penso que o livro de Henry Valentine Miller (1891-1980), atualmente, sofre de tal injustiça ao ser taxado de misoginia, pornografia e literatura menor, no sentido pejorativo da palavra 'menor'. Uma curiosidade sobre o livro: ele foi publicado em 1934, na França, mas censurado nos EUA até 1961 e na Grã-Bretanha até 1963. Os motivos eram sua linguagem obscena e excesso de palavrões (que curiosamente não ocupam tantas páginas assim, comparado aos livros eróticos atuais consumidos pelo público feminino). À exceção talvez de ‘O Príncipe’ de Maquiavel e ‘120 de Sodoma’ do Marquês de Sade, poucos livros ficaram tanto tempo - uma geração! - sob censura estatal como ‘Trópico de Câncer’, mas por motivos distintos. Maquiavel e Sade, embora este último tenha o sexo como tema, fazem uma verdadeira crítica às instituições políticas e religiosas, enquanto Miller, apolítico, está preocupado com a liberdade sexual em si mesma, nada mais. E é aí que os censores, principalmente os protestantes puritanos e as elites burguesas, viram perigo; para eles, assim como para a psicanálise, a liberação sexual poderia fazer ruir os valores da civilização ocidental: a ética do trabalho e a meritocracia, principalmente, mostrando a hipocrisia das elites que pregam, mas não vivem tais valores.
A primeira coisa a notar no livro é que o mundo que ele descreve - o submundo da prostituição, dos mendigos e dos artistas pobres - a ética do trabalho árduo da burguesia não tem valor. Todas as personagens, à exceção das prostitutas, são vagabundos e para os artistas não há distinção entre o que fazem (arte) e a vida que levam. É um paradoxo, pois justamente os vagabundos e as prostitutas, os 'alienados' enfim, são os únicos que não separam vida e obra, sendo mais cristãos do que muitos que o dizem ser, já que Jesus não só pregava, mas vivia o que pregava. Neste ponto não só revelam como escancaram a hipocrisia da sociedade e cultura burguesas, como neste belo trecho no qual a linguagem chula que tanto incomoda a uma mente conservadora, senão tacanha, é mais poética do que obscena:
‘Quando olho dentro dessa boceta de puta f*dida, sinto todo o mundo embaixo
de mim, um mundo vacilante e desmoronante, um mundo gasto e polido como
a pele de um leproso. Se algum homem ousasse dizer tudo o que pensa
desse mundo, não sobraria um metro quadrado de terra para ficar de pé.
Quando aparece um homem, o mundo cai em cima dele e quebra-lhe a
espinha. Restam sempre colunas apodrecidas demais, humanidade
pustulenta demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma
mentira e o alicerce é um grande trêmulo medo. Se, a intervalos de séculos,
aparece um homem com um olhar faminto e desesperado, um homem que
poria o mundo de cabeça para baixo para criar uma nova raça, o amor que ele
traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo. Se, de vez em
quando, encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam,
que arrancam gemidos, lágrimas e pragas, sabemos que elas vêm de um
homem encurralado, cujas únicas defesas são as palavras, e suas palavras
são sempre mais fortes que o peso esmagador e falso do mundo, mais fortes
do que todos os flagelos e rodas de tortura que os covardes inventam para
esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse traduzir tudo
o que tem em seu coração, expressar realmente a sua experiência, o que é
realmente a sua verdade, acho que o mundo se despedaçaria, explodiria em
pedaços e nenhum deus, nenhum acaso, nenhuma vontade poderia jamais
juntar os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis incluídos na
formação dele.’ (Miller, 2017, pp. 229-30).
Não há como não notar ecos de Nietzsche aí, mas o que choca é o escritor tendo essas epifanias sublimes ao olhar para a vagina f*dida de uma p*ta num bordel qualquer, não numa instituição respeitável como a igreja ou a universidade.... É como se tais personagens dissessem o tempo todo: ‘Por que nos julgam burgueses e sacerdotes? Nós vivemos como vocês: não trabalhamos, somos parasitas, como vocês!, a única diferença é que não somos hipócritas, como vocês!, deixamos claros que somos parasitas, como vocês!’.
A importância e a originalidade do livro não estão na linguagem obscena ou na pornografia, mas em sua exposição e crítica franca ‘de ousar traduzir tudo o que tem em seu coração’. Depois de Miller, o romance autobiográfico produziu obras muito melhores, mas foi ele quem tornou este gênero literário um senso comum.