Lola444 31/01/2019Desconfortante, indigesto e maravilhoso.A primeira vez que li Precisamos Falar Sobre o Kevin eu estava entre os 15/16 anos, desde esse primeiro contato ele já se tornou um de meus livros favoritos. Ao relê-lo agora, com meus 27 anos, meu fascínio pelo livro cresceu, mas minha interpretação em muito se alterou.
Primeiramente, em minha visão adolescente eu não conseguia "perdoar" a Eva pela rejeição que sentia pelo filho, culpei-a desde o início, para mim ela tinha feito o monstro. Me apeguei fortemente a Frank, quem eu achava um pai apaixonado e dedicado, cuja ingenuidade e positividade não permitia ver além do filtro de filho perfeito que Kevin usava.
Bom, não preciso nem falar como tudo isso mudou, nesta revisita, me peguei completamente empática com a Eva (embora não me identifique com sua ausência de instinto materno), mas eu conseguia entender perfeitamente como foi doloroso para ela, sendo do jeito que era, se sentir tão indiretamente pressionada para engravidar, para cumprir seu suposto papel de mulher para ser completa. Não era justo. Afinal, Eva já se sentia completa, ela era realizada profissionalmente e maritalmente e isso já lhe era o bastante.
Nesse aspecto, entramos então nas concessões que fazemos por amor a alguém, até que ponto é válido abrir mão de um posicionamento para deixar o outro feliz? Eva amava Frank com todas as forças que é possível amar alguém, e por ele ela foi capaz de gerar um bebê que o próprio corpo dela rejeitou o nascimento na hora do parto, ela contrariou todos seus instintos anti-maternos para dar a luz ao pequeno Kevin e fazer todo mundo feliz, menos ela.
A partir do momento que Kevin nasce e toda sua trajetória até a grande "quinta-feira", nós acompanhamos, através das recordações de Eva, um garotinho apático, misterioso e, como sua própria mãe aponta, que parece carregar na alma a vivência de outras encarnações, pois parecia tudo menos uma criança. Kevin passa a infância e parte da adolescência utilizando uma máscara para toda a sociedade, exceto com Eva, pelo menos, com ela, ele parece mostrar sua versão mais honesta, ainda que talvez seja só o a ponta do iceberg de sua complexidade.
Para falar a verdade, analisando a leitura, podemos entender que Kevin é um menino extremamente atormentado pela sociopatia que lhe acompanha desde que nasceu, o mundo para ele não tem graça, objetivo, tudo é irrelevante e sem fundamento, nada lhe empolga, interessa ou excita. Quando alguém vive em tamanha apatia, ela começa a desejar algo que lhe leve além, e talvez ele tenha achado que a matança seria aquilo que lhe daria uma razão na vida. Ele é desprezível e asqueroso, mas justamente como Eva lhe descreve, de alguma forma, Kevin exerce uma atração sobre o leitor, ele é fascinante, embora desumano. Na verdade, talvez, justamente uma pessoa ter as noções de humanidade tão ausentes, seja justamente o que intriga o público normal.
Quanto ao Frank, minha visão atual dele não é nada simpática, sua ingenuidade passa e muito do aceitável, transformando-se em cegueira aguda. Ele é tão apaixonado por Kevin, que começa a preterir por completo seu casamento, a voz de Eva perde toda a credibilidade, e ele passa a enxergá-la como semi-mulher, na cabeça dele ela deveria ser aquele clichê ambulante (coisa que o próprio se tornou, o que despertava ainda mais o desprezo de Kevin), e deveria se sentir grata em fazer sacrifícios em prol do pequeno demônio que ela pariu. E não importava, se TODAS as pessoas ao redor e não apenas Eva, demonstrassem medo, desprezo ou desconfiança em relação a Kevin, o mundo inteiro se unira em conspiração contra seu garoto de ouro. Ele era um homem bom, sim, mas um tanto hipócrita em muitos aspectos, e longe de ser um excelente pai, pois um excelente pai não passa a mão sempre na cabeça do filho, e Frank era o retrato perfeito do pai passador de pano, que cria monstrinhos, talvez bem mais do que uma mãe pouco apaixonada.
É claro que o livro nos leva sempre a mesma questão: de quem é a culpa?, mas eu creio que a resposta para isso é justamente a ausência de resposta, não dá pra saber se o monstro nasceu da falta de amor de Eva, da proteção demasiada e cega de Frank, ou se é inerente a Kevin desde que nasceu e teria nascido assim em qualquer cenário que fosse.
A leitura também nos traz reflexão a respeito do instinto maternal e da lenda urbana de que toda a mulher o possui ou vai possuir no momento mágico do parto, e é triste que até hoje esse tipo de discurso que acarreta numa obrigação tácita para todas as mulheres de serem mamães amorosas, mesmo quando elas conseguem muito bem se sentirem completas sem uma prole. E tudo bem.
Acho que, no final das contas, o que mais me intriga a respeito desse livro é o que exatamente o Kevin sentia pela mãe, eu não consigo entender bem, será que em algum nível ele a amava? Ou ele a respeitava por ela ser a única que, aparentemente, o enxergava como ele de fato era? Bem, são perguntas que nunca saberemos pois estão enterradas na mente doentia de um assassino mirim.
Outro ponto que eu acho que geraria horas de debate é qual o estado emocional Kevin se encontra no final do livro, é quase um enigma pra mim, não vou falar muito a respeito para não ser spoiler, mas a mudança de conduta é grotesca, aí entra a dúvida: seria arrependimento ou medo do que estava por vir? No fundo, acho que Kevin apostou muitas fichas no que ele viria a sentir após cometer a chacina, ele acreditava piamente que aquilo o faria finalmente sentir-se vivo, após uma vida inteira de letargia. Mas após a grande excitação inicial, a apatia voltou e ele percebeu que talvez não tenha valido tanto a pena assim.
O último parágrafo do livro é uma flechada no peito, esmagador e melancólico, e você fica pensando por horas e horas como uma vida pode ser completamente destruída em um dia, e todas as maneiras que se poderia ter impedido isso, e o mais aterrador é quando percebemos que a resposta é absolutamente nada.