Pedro Nunes 02/03/2011
Precisamos falar sobre este livro
Passei o natal do ano passado aqui no Rio de Janeiro, com meu tio João Carlos, irmão mais novo do meu pai. Eu e meu tio não tivemos muito contato durante minha infância e adolescência - acho que nos vimos umas quatro vezes, se tanto -, mas, depois de adulto, nas poucas vezes em que nos encontramos, sempre tivemos muito assunto para conversar, sendo meu tio um leitor ávido, que sempre tem um livro a recomendar e vários para oferecer, como empréstimo ou presente. Foi ele quem me deu, em 2002, o que considero meu livro preferido, dentre todos os que já li, Um Estranho Numa Terra Estranha.
De presente de natal ele me deu Precisamos Falar Sobre o Kevin, da Lionel Shriver, com o simpático comentário “um livro sobre um maluco, pra você se identificar”.
Bom, não me identifiquei com o livro, mas terminei de lê-lo hoje e ele merece ser comentado. A princípio, torci o nariz ligeiramente para o volume, e não foi por causa da foto inquietante do garoto usando uma máscara de lobo, lânguido, presente na capa. A orelha do livro (sim, sempre a orelha) descrevia a personagem central como uma “executiva bem-sucedida”, e considero que “executivo bem-sucedido” é um termo muito “novela da globo” para uma história que se pretende bem-embasada. Me aventurei pelas primeiras páginas, de todo modo.
O livro é feito em missivas. São longas e longas cartas que a personagem principal, Eva, escreve para seu marido ausente, Franklin, sobre o filho adolescente, cujo grande feito na vida foi entrar no colégio armado e fazer uma sessão Columbine com alguns colegas. No começo, acredito que durante uns 3 ou 4 capítulos - o que pode bem levar umas 40 ou 50 páginas, mais ou menos - Lionel Shriver tem pouco sucesso para andar com a história. Num esforço para desenvolver bem o relacionamento entre Eva e Franklin antes do nascimento do pequeno profeta do apocalipse que os dois haviam de gerar, assim como apresentar a situação atual de Eva, ostracizada após a descoberta do hobby socialmente mal-visto do filho, a autora dá diversas voltas sobre o mesmo ponto, por vezes transformando Eva numa mulherzinha particularmente detalhista e pretensiosa. Ela, em certo momento, descreve um jantar que preparou, e é uma informação que não têm, para o leitor, a menor relevância além do fato de dizer de forma meio insistente o que o resto do livro deixa claro de maneira menos antipática: estamos lidando com uma mulher muito fresca. Mas dou o braço a torcer: a faceta de “executiva bem-sucedida” de Eva fica mais palatável, saindo do campo da “vaguidão específica” e transformando-se em algo mais concreto e realista.
A partir do momento em que o garoto nasce, porém, a história começa a caminhar a passos mais e mais acelerados, e da metade para o final o livro passa sem que se perceba. Os momentos em que Eva e Kevin dialogam, já na prisão juvenil em que o garoto se encontra, são especialmente interessantes. Há uma tensão entre os dois - narrada sob a ótica da mãe, é claro, mas sem demonizar ou vitimizar qualquer um dos lados do embate - que requer bastante competência para ser construída e pode fazer muita gente que acha que tem “problema com os pais” se remexer na cadeira, inquieto.
Shriver foge do cliché de apontar um “abismo” entre a geração de Kevin e a de Eva e Franklin, deixando a grande discussão do livro a cargo da velha dúvida: o que molda o caráter de uma pessoa? O que transforma Kevin naquilo que ele é? Fugindo dos bodes expiatórios que o senso-comum tanto gosta de apontar (videogames, filmes violentos, rock, drogas, escolha o seu demônio), a autora levanta a possibilidade da maldade ser, como a facilidade para a música ou a aptidão para os esportes, um dom inato, sem, entretanto, eximir os pais de sua parcela de culpa em seja lá que tipo de sociopata eles geraram. E, apesar de sua crueza ao lidar com o tema, no capítulo final a autora tem para com a história uma indulgência que eu, sinceramente, considerei desnecessária.
A tradução (por conta de Beth Vieira e Vera Ribeiro) dá algumas derrapadas, como ao insistir no termo “bazófia” (tradução de mockery, acredito), ao falhar com algumas interrogações ou ao tentar trazer para o português certas expressões que, se não são inacessíveis em sentido, não podem ser usadas com o mesmo tom de voz e definitivamente não têm o mesmo impacto em uma conversa em pt-br como teriam num diálogo em inglês. São calombos insulúveis, no entanto, não se pode crucificá-las por eles.
E, apesar dessas pequenas falhas, o livro merece ser lido. Dei a ele 4 estrelas, de 5, no Skoob. Se não pelo estilo simples da autora, ao menos pela despretensão de trazer à baila uma questão importante, sem contudo tomar para si o árduo dever de respondê-la. Da mesma maneira que os videogames, os filmes violentos e a música pop não são os causadores da violência entre adolescentes, não é uma obra de ficção que tem a obrigação de solucioná-la. Se tentasse, a exemplo de Eva Katchadourian, acabaria soando pretensiosa.
E tem um filme sendo feito, com base no livro, previsto para sair em novembro deste ano. A mulher escalada para interpretar Eva e o guri que vai interpretar o Kevin parecem ter inspirado Lionel Shriver a detalhar a aparência física dos dois personagens, tamanha a semelhança. Mas o john C. Reilly como Franklin… aí não deu.