spoiler visualizarAuristela 05/01/2024
CONDENADO À MORTE!
“Pois bem, porque não? Os homens, recordo-me de ter lido não sei em que livro que só tinha de bom esta frase, os homens estão todos condenados à morte com adiamento indefinido.”
A primeira obra que li de Victor Hugo foi Os Miseráveis (1862). Dois tomos, impressões antigas, sem introdução, sem orelha, sem ISBN.
O primeiro tomo, amarelado e sem capa, veio da Livraria Dom Quixote (em frente ao Colégio Froebl). Uma vez lido, levei para lá novamente, que costumava fazer dos livros já lidos saldo de compra para outros livros que eu queria ler.
Em busca da sequência da história, conto que o segundo volume foi muito mais difícil de encontrar. A Estante Virtual por fim me trouxe encadernação em capa dura, sem classificação da obra, nem mesmo dados sobre o autor.
Voltei ao sebo e resgatei o tomo um. Não pela raridade, mas pelo impacto que a obra toda teve em mim. Decidi que nunca mais iria me separar dos dois volumes, guardo-os embrulhados com plástico filme.
A obra completa exige do leitor muitas horas, torna difícil recomendar a leitura, que hoje concorre com outros lazeres: academia, bicicleta, clubinhos, e com a disputadíssima carreira de publicação de autorretratos no Instagram. E se não quero, por inútil, indicar obras por demais extensas, é com grande prazer que recomendo, do mesmo autor, essas duas, brevíssimas: O Último Dia de Um Condenado (1829) e Claude Gueux (1834).
Selecionei com o cuidado de quem coleciona e a Estante postou para mim uma impressão de 1972, da Editora Verbo, tradução de José de Nel-Castro, com essas obras acima reunidas em edição capa dura. Sem ISBN, mas com uma breve descrição das obras do autor.
Anotei este trecho de Claude Gueux, que quero compartilhar:
“Em geral, quando uma catástrofe privada ou pública se abate sobre nós, se examinarmos, a partir dos escombros que jazem por terra, de que maneira é que ela se arquitectou, encontramo-la quase sempre cegamente construída por um homem medíocre e obstinado que tinha fé em si mesmo e que se admirava a si mesmo.”
O narrador, na frase acima, refere-se ao carcereiro morto pelo personagem Claude Gueux. Esse, inteligente, mas analfabeto, é preso por crime menor. Trabalhador da oficina, passa fome, se revolta, calmamente, por dias, por ter sido afastado de outro prisioneiro, um rapaz de dezenove anos, que compartilhava consigo metade do seu pão. Condenado por assassinar o carcereiro e frustrado na tentativa de se matar com uma tesoura, por fim tem a própria cabeça tombada, meses depois.
Temos, nesta obra, dois condenados a morte. O carcereiro: julgado e condenado pelo próprio Claude Gueux. Em audiência junto a seus companheiros de oficina, ele explica o porquê e anuncia que matará o carcereiro, ninguém se atreve a dissuadi-lo. O carcereiro é morto a machadadas pelo prisioneiro e esse na guilhotina.
Já em O Último Dia de Um Condenado, não sabemos do crime em si, nem o nome do condenado que o tempo todo conversa conosco, ele próprio o narrador. Em capítulos curtos, nos traz as suas reflexões, sentimentos, conta do transporte até a prisão, da preparação para o julgamento, do recurso, da decisão de escrever, da espera, do frio, da visita da filha, do padre, das coisas que considera hediondas, da impressão que tem do povo, a própria leitura que faz de tudo, até o último segundo antes da execução.
Condenados à morte com adiamento indefinido, que possamos ler mais e quiçá aprender a escrever melhor lendo mais Victor Hugo antes de morrer.