Lucas 02/03/2020
Uma defesa à abolição de toda pena de morte, mas que também pode ser lida por quem não pensa assim
A questão da pena de morte é um dos maiores dogmas que existem na sociedade como um todo. São plurisseculares as correntes de pensamento e até de filosofias próprias que derivam dessa dualidade entre quem é a favor desse tipo de tratamento e quem considera esta uma penalidade exagerada em decorrência de qualquer crime.
Victor Hugo (1802-1885), o grande escritor, poeta, dramaturgo e político francês ilustra aos dias atuais o caráter atemporal que essa divisão provoca, por meio da obra O Último Dia de um Condenado, de 1829. Nela, há um relato em primeira pessoa que, na maioria das vezes, machuca e choca.
Contextualmente falando, havia na França dos anos 1820 uma influência bastante relevante da guilhotina, o instrumento de penalidade inventado pelo médico Joseph Ignace Guillotin (1738-1814). Por mais popular que ela seja na história ocidental, é preciso observar que tratava-se de um mecanismo com cerca de 4 metros de altura que sustentava uma lâmina extremamente afiada com cerca de 40 quilos, que ficava suspensa no alto da estrutura. O condenado ficava com o pescoço posicionado abaixo dela e a lâmina era liberada por um sistema de cordas e roldanas, decapitando o apenado. A guilhotina foi uma "herança" da Revolução Francesa (1789) que, por mais que hoje signifique um símbolo máximo da República e de Liberdade, foi construída sob o sangue de centenas de pessoas, inocentes ou não.
É importante que se pormenorize a guilhotina não para fins didáticos, mas para que ela seja reconhecida dentro da obra como um personagem importante, que se não é nomeado muitas vezes, adquire sob a escrita de Victor Hugo um caráter tão condenável quanto a pena de morte em si. E outro aspecto, o da execução pública da pena, que gerava um rebuliço considerável em Paris, especialmente entre os populares, também era algo que, hoje, justifica todo o posicionamento contrário do autor. Mas na época, com uma sociedade que vinha se formando a partir da revolução e que, portanto, não tinha um senso de humanidade vívido nestas situações, a obra recebeu inúmeras críticas.
Tais críticas não foram direcionadas à narrativa, que trata do relato em primeira pessoa de um condenado que cometeu um crime (que não é mencionado literalmente, mas algumas pistas dão a entender que se tratou de um assassinato ou latrocínio) e que passa as pouco mais de 150 páginas da obra relatando por vezes de forma frenética as suas últimas horas; as ressalvas literárias foram direcionadas à condenação de Victor Hugo à pena de morte propriamente dita, como uma punição totalmente desproporcional em qualquer tipo de crime.
Curiosamente, a narrativa em si não faz uma defesa apaixonada da abolição da pena de morte. O que há, em quase 50 capítulos curtos, é um contínuo estado de agonia opressiva, capaz de gerar no leitor não um sentimento de sensibilidade e afeição cega ao criminoso, mas uma profunda reflexão do que pode se passar na cabeça de um indivíduo quando ele descobre que terá sua vida ceifada pelas mãos do homem-espécie, que não foi o responsável por colocá-lo nessa vida. Esta é a grande questão intrínseca ao pessoal, ao indivíduo, a de ciência com o fato de que suas horas neste plano terrestre estão "contadas" e de que será um homem, racional como o condenado, e não o destino, o responsável pelo fim dos seus dias.
Se a narrativa do criminoso é marcada pela agonia que causa, é no prefácio de uma reedição da obra, feito em 1832 (e transcrito após a história principal na excelente edição da editora Estação Liberdade, que serve de base para a resenha) que o leitor terá uma defesa mais apaixonada em termos humanos, jurídicos e pessoais de Victor Hugo da abolição de tais práticas. Redigido como uma resposta às críticas do lançamento original de 1829, o texto fornece uma visão mais ampla da pena de morte com argumentos bastante válidos: a opinião promíscua das câmaras de legislação da França com relação ao tema, as crueldades mais exacerbadas inerentes à engenharia da guilhotina, a questão social (da pena de morte como uma "vingança" da sociedade, algo que Hugo particularmente condena, de forma justa), do oportunismo dogmático inerente ao indivíduo que aprova a pena de morte mas se o criminoso é um membro da família o cenário muda (assim como deviam e devem haver os casos de pessoas que condenam a pena mortal mas mudam de figura quando são afetados por um crime bárbaro), das relações sociais que o apenado possui e da influência que o seu sacrifício é capaz de causar em outras pessoas, entre outros aspectos, todos muito bem discutidos pela já recorrente habilidade de trazer reflexão que Victor Hugo dispunha.
O Último Dia de Um Condenado pode ser entendido dentro da carreira literária de Victor Hugo como a primeira obra que ele escreve capaz de dimensionar não apenas a sua preocupação humanista, como também social e política (quase no fim da vida, ele foi Senador). Claramente de caráter panfletário, trata-se de uma obra que se prova incapaz de alterar o ponto de vista do leitor acerca do tema. E por isso mesmo pode ser conhecida e discutida por todos os que amam ler. Todavia, o ensinamento que fica é o de que os argumentos condenatórios à pena de morte, exaustivamente expostos pelo autor, são os mesmos utilizados ainda hoje, quando guilhotinas, por exemplo, são artigos raros de museus. E este caráter transcendental precisa ser pelo menos minimamente refletido pelos que se dizem favoráveis à pena de morte. A conclusão prática que fica é a de que é preciso, e isso a obra faz muito bem, que sejam avaliados vários aspectos de ordem pessoal e social antes que se brade aos quatro cantos que se é favorável a este tipo de pena.