Túlio Demian 21/10/2019
Nota de leitura de Memória do Cárcere
Nessas memórias de Graciliano Ramos podemos observar além de seu distanciamento plausível para a confecção menos apaixonada e mais racional, uma despreocupação com os modelos literários em voga na época. Auge do modernismo brasileiro, Graciliano está mais preocupado com o conteúdo de sua obra e com a sua identificação com os registros propostos do que necessariamente agradar aos interesses de uma estética comprometida com os movimentos artísticos de um período histórico.
Memórias do Cárcere é também, dentro dos preceitos defendidos por Lukács, um romance histórico de natureza documental, que imprime ao protagonista, a obrigação de observar e transformar o seu espaço. O herói, que por um longo período se mostra desconhecer as causas pelas quais fora preso, por diversos momentos, observando outros companheiros de confinamento, analisa sua própria capacidade revolucionária e passa a auto-avaliar suas atitudes que sequer são dignas de um prisioneiro político, no sentido de que, ele jamais tivera, verdadeiramente, uma atitude revolucionária. Estes questionamentos nos encaminham para os valores do narrador que jamais foram externados na prática.
A força da introspecção de Memórias do Cárcere está em criar um universo de conflito para as discussões que o universo exterior não poderia saber. Tanto pelo poder opositor do Estado Novo, do qual era acusado de subversão, e pelos próprios princípios do grupo de comunistas (Primeiras manifestações) o qual era acusado de pertencer. Aqui, nesses espaços de conflito e criação é que se estabelecem as diretrizes para o que viria a ser a mais brilhante obra memorialística que temos registro em nossa língua.
Na introspecção registrada nos manuscritos do cárcere e/ou ainda aquela que fora produzida anos depois, quando de seu preparo para o projeto do livro, o autor nos presentei com uma ficção baseada em registros memorialísticos de forte impacto catártico que não nos permite questionar o teor jornalístico de suas observações.
Essas marcas ficcionais podem ser observadas na onisciência do narrador quando mergulhado nas preocupações de personagens alheios, como se uma percepção das expressões desses personagens fosse o suficiente para determinar as profundas angústias que estes sentiam, ou que, numa leitura mais atenta, denotam apenas o reflexo de sua própria angústia diante da incerteza de seu destino, que lhe acompanharia em quase todo o seu percurso como prisioneiro. No entanto, o que há de mais evidente nessa estrutura narrativa, que busca alinhar os fatos reais com o uso dos fatos criados, é a própria percepção do narrador com o ato da criação na edição das memórias ora como positiva e ora com repulsa pelo próprio narrador:
O diabo é que, se me decidisse a narrar por miúdo a conversa do capitão, tanchar-me-iam de fantasista. Ou dar-me–iam crédito indivíduos que andassem no mundo da lua, idiotas ou românticos (Ramos, p89).
A observar de atos de seus próximos, aliados ou não, serve de um prato cheio para uma análise de sua postura com “revolucionário” (termo pelo qual poderia ser acusado) e para uma observação mais detalhista acerca da atitude do próprio movimento revolucionário que se propunha como resistência. Ações que a atitude de um militar, que se nenhum motivo aparente decidia por ajudá-lo, e que, para qualquer um seria apenas um alimento da causa em que se injetava a confiança e a própria liberdade, para o narrador era motivo de questionamento sobre o seu fazer revolucionário.
Capitão Lôbo, portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no caso uma espécie de deserção. Impossível explica-la. Se ele condenava s minhas ideias, sem conhecê-las, direito, porque me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e brutalidade com certeza me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior que nos encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha neles – e as coisas não se passam como havíamos previsto: passam-se de modo contrário. A exceção nos atrapalha, temos de reformular julgamentos. (RAMOS, p. 87-88)
E fora a busca por essa renovação rápida dos valores que fizeram desse prisioneiro peculiar fugir às atitudes de reflexão comuns a esse tipo de situação: A da adesão e da repulsa.
Ou seja, a atitude de um condecorado, um inimigo declarado, que discordava de seus preceitos e ainda assim, contra a força que o emergia e o condicionava, agia. Isso, a atitude de resistência é o que aquela intelectualidade não conseguia compreender e, portanto o grande gatilho para os questionamentos desse cárcere que vivera até então o espírito de resistência que pode ser observada no enxerto abaixo:
A nossa vida não tem muito valor, às vezes se encrenca e desejamos a morte; faltando-nos coragem para o suicídio, exibimos outra forma de coragem; queremos desaparecer; é uma perda individual. Mas ninguém, de senso perfeito, joga fora os seus bens, pois nisso repousa o organismo social – e o sacrifício constitui prejuízo coletivo. Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário do que eu. Tinha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante (RAMOS, P 88).
Memórias do Cárcere é mais que um documento de resistência, é sim, um importante registro dos preceitos reflexivos sobre a práxis indispensável no dia-dia de quem almeja uma transformação, independente de sua dimensão. Já que as mazelas e friezas do cárcere ultrapassam as muralhas os alçapões de qualquer instituição, e encarceram os projetos e sonhos revolucionários inertes no peito dos oprimidos e militantes.
Ari Mascarenhas - O texto original se encontra em meu blog
site: https://contempoemidade.blogspot.com/2019/10/memorias-do-carcere-graciliano-ramos.html