Eduardo 08/12/2022
Entre o Imperialismo e a fascinação pela ciência
Demorei muito para ler esse clássico – mais do que eu desejara, inclusive. Lembro-me que minha paixão por Júlio Verne surgiu ainda ao final da infância (por volta de uns 11 anos de idade) quando assistia o documentário “Meu Júlio Verne” na TV Escola e, àquela época, era completamente fissurado pelas ciências naturais. Não seria surpresa para ninguém que as aventuras “vernerianas” sempre foram objeto de meu interesse. Li “Viagem ao Centro da Terra” e “A Ilha Misteriosa” (o que faz, inclusive, com que eu tenha lido a história do Capitão Nemo de trás para frente, ainda que sem querer) com muito carinho, o que se repetiu agora, mais de 10 anos depois do início da minha admiração pelo Pai da ficção científica.
O romance de Júlio Verne possui algumas características muito peculiares que certamente irão desagradar um grande público, sobretudo o público mais novo. Verne não economiza linhas ao descrever de forma muito minuciosa as belezas do mundo submarinho, de classificar inúmeros animais, de explicar – da forma mais científica possível – o funcionamento do submarino Nautilus. Isso acaba deixando a estória um pouco mais lenta, às vezes entediante, a depender do seu gosto pela matéria científica por trás.
Óbvio, há um contexto histórico para isso. É uma obra do século XIX, onde o conhecimento científico e, sobretudo, sobre o fundo do mar, não estava tão difundido.
Entretanto, tais “defeitos” não podem, nem de longe, ofuscar o brilho dessa obra. Mais do que um livro de aventura infanto-juvenil, o romance congrega em suas páginas diversos temas: a antecipação (ou seria previsão?) de uma tecnologia revolucionária para a época – um submarino movido à energia elétrica -, as riquezas do fundo do mar, o avanço científico, bem como uma discussão profunda sobre o imperialismo.
A estória é narrada integralmente pelo naturalista professor Annorax e vimos tudo do seu ponto de vista. Entretanto, o verdadeiro protagonista é o Capitão Nemo (do latim: "Ninguém"), um personagem que se eternizou na cultura ocidental, saltando das páginas escritas por Verne e sendo objeto das mais diversas adaptações e referências no cinema, nos quadrinhos, na TV etc.
Descontente com os rumos da civilização humana, o Capitão Nemo se utiliza de toda sua riqueza – a qual, é um grande mistério ao longo da obra – e de todo o seu extraordinário conhecimento científico para construir um navio submarino movido à eletricidade produzida pela utilização do sódio retirado do próprio mar.
Nemo abandona a vida terrestre. Vai buscar refúgio no fundo do mar e, a partir da visão do professor Annorax e seus companheiros Ned Land e Conselho, descobrimos um pouco sobre esse personagem envolto de mistérios em uma verdadeira volta ao mundo submarina.
Como disse, o livro também fala sobre imperialismo. Não posso adentrar muito nas motivações do personagem – até para evitar spoilers -, mas sabemos que o Capitão Nemo foi vítima de alguma perda irreparável em razão de algum grande império – o que, em razão do contexto e de diversas dicas ao longo do livro, certamente seria o Império Britânico.
Acredito que as referências ao Império Britânico são sutis, mas facilmente identificadas com um pouco de reflexão. Annorax e seus companheiros são prisioneiros do Capitão Nemo, mas ao mesmo tempo são apresentadas a maravilhas do conhecimento científico que, a todo o momento – com exceção de Ned Land –, fazem brilhar seus olhos. O conhecimento científico pelo qual o professor Annorax se apaixona vem, justamente, com a ausência de liberdade. Em que pese haja uma fascinação científica, há também o cerceamento de um dos direitos mais básicos de qualquer indivíduo. Lembra-me muito o “fardo do homem branco”, uma visão que glorifica o imperialismo europeu como uma missão civilizatória para “selvagens”, mascarando a violência e a exploração do neocolonialismo.
Nesse ponto, o Capitão Nemo é um tanto quanto hipócrita. Ao passo que dedica sua vida ao mar, que se afastou de tudo que for terrestre, ele próprio possui um “quê” de imperialista. Aviso: Nemo não é o herói da história – em verdade, é um personagem cinza, sendo profundamente carismático, mas com traços vilanescos bastante claros.
A luta contra o imperialismo britânico parece ser materializada em uma das passagens mais populares da obra: o ataque de polvos (há um grande polvo, inclusive, na capa da edição que li, a da Editora Zahar). Bastante comum é a representação do império como uma grande lula/polvo. Isso ocorre porque o Império Britânico era um império marítimo e era considerado como o império “onde o sol nunca se põe”, esticando todos os seus “tentáculos” ao redor do globo. Uma batalha entre o Capitão Nemo e esses animais é, talvez, o maior exemplo de materialização da discussão do imperialismo europeu que podemos encontrar na obra – ainda que possa passar despercebida para desatentos ou desavisados.
Obra obrigatória para todo amante da ficção científica, com um dos personagens mais ricos de Júlio Verne. Li com carinho e, com ainda mais carinho, escrevi essa resenha.