lucasfrk 12/08/2022
Vinte mil léguas submarinas ? Resenha
O termo ?romance científico? surge em meados do século XIX para descrever escritos especulativos sobre a história natural, ou ainda taxar ideias científicas de fantasiosas. Com o trespassar do tempo, a rótulo começa a ser aplicado a obras ficcionais que incorporassem pródigos científicos no enredo ? visto que o conhecimento científico começava a apontar para ideias mais plausíveis sobre o futuro.
Numa época em que dominavam o mundo e viviam às custas dos recursos de suas explorações, os europeus cada vez mais obcecavam-se pela tecnologia, pelo progresso social, viagens e aventuras, na tentativa de ajudar a alterar o estado de miséria e sordidez em meio ao conforto da riqueza. Em diversos países o dito cujo gênero da ficção científica (que, a bem da verdade, significa o mesmo que ?romance científico?) floresceu, no entanto, foi na França que esse modo de produção literária ganhou maior sensibilidade e força, na tentativa de resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos e astronômicos recolhidos pela ciência moderna, e retomar, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria, a história do universo.
De fato, Jules Verne (1828-1905) foi o escritor mais notável ao tratamento do gênero. Ao contrário da grande maioria das histórias desse tipo, a narrava verniana evidenciou-se numa ficção não ancorada no futuro, mas sim no presente. Seu estilo, preenchido por cuidado, didatismo e inventismo, certamente sofreu influências com as ideias de darwinianas. Nesta que talvez seja sua magnus opus, Verne une ciência e exploração, e deixa clarividente seu gosto previdente e imaginativo pelas viagens futuristas. Criticando a fantasia científica de H G Wells;, Verne possui a intenção de extrapolar coerentemente a partir do saber científico de então.
O fervor didático une-se a um fascínio quase exótico pela tecnologia, fauna e geologia marítimas, um certo amor pelo mar e uma infinita curiosidade por seus mistérios. Nele, o autor delineia expressões de um oceano de anseios de liberdade da ordem colonialista, imperialista e escravocrata.
Verne ajudara a estabelecer um tipo de romance que, sem abrir mão de ula eletrizante carga de entretenimento, apresentava e discutia as principais questões que norteavam o conhecimento científico de seu tempo. Em seus relatos fantásticos, o escritor francês previu com uma precisão mastodôntica a aparição de alguns inventos criados com os avanços tecnológicos do século XX ? entre eles o helicóptero e as naves espaciais ?, além de ajudar, ainda que involuntariamente, no desenvolvimento de outras artes ? tal como a televisão, o cinema falado, a vitrola e afins.
No tocante à narrativa propriamente dita, ao que parece, Verne transpõe ? com excepcionalidade ? sua posição diante da época em que vivia, representando dois posicionamentos éticos distintos com relação à ciência nas personas do professor Aronnax ? acredita em valores morais universais, como a preservação da vida, o pacifismo e o senso de que a ciência deve sempre servir à humanidade ? e o capitão Nemo ? que apresenta uma postura ética variável e seletiva, sendo o salvador de alguns homens e o carrasco de outros (todavia, há de se notar, evidentemente, que de forma uma seja o algoz do outro). Nemo utiliza a embarcação do Nautilus por sanha pessoal, lutando contra as nações que considera opressoras e considerando-se salvador dos povos oprimidos. Nesse sentido, Nemo (?Ninguém?, em latim) parece remeter a um ?prometeu moderno?, que detém de uma ferramenta que ?trará luz? aos povos ? neste caso, os oprimidos. Contudo, em nenhum momento Verne faz questão de aprofundar a persona conturbada do capitão, deixando margem interpretativa para entender ?Ninguém? como bem-quiser.
Em última análise, a experiência de ler Vinte mil léguas submarinas é marcada por uma sensação de que existe algo nas entrelinhas, dentro desse pano de fundo social da história e na misteriosa revolta do capitão Nemo, que adquire ressonância nos efeitos das políticas imperialistas praticadas no século XIX.
Por fim, a edição da Penquin Companhia, como de praxe, advêm junto a um excepcional prefácio do editor Roberto de Sousa Causo. Verne, o futurista, que teve sua obra taxada de ?fantasiosa? na medida em que unia aventura e imaginação ? compondo elemento que ainda não existiam ?, centrava-se mais presente, baseando-se em uma vasta pesquisa, indo por regiões pouco conhecidas e estudos científicos ainda em estágios iniciais, de forma que muitos desses elementos ?fantasiosos? se confirmaram na contemporaneidade.